Vi contar que nas proximidades da velha Goiás, antiga capital goiana, há algumas décadas um fato marcante aconteceu e, por isso, merece um lugar na história. Abastado fazendeiro promoveu em sua fazenda um festivo churrasco regado a tudo que os convivas e entendidos do assunto pudessem exigir. Todo tipo de bebida era servida indicando que a festança deveria virar a noite daquele memorável sábado.
Entre os presentes estava um convidado especial, Dr. Alencar Miranda Silva, um jovem médico mineiro que pelos seus méritos era respeitado em toda a região. Tinha ele um detalhe que para a época era uma afronta à aristocracia arraigada: era afro-descendente, como eu também sou de meu avô materno.
Tudo ia bem até que no meio da tarde uma notícia tirou o sossego de Dr. Alencar: o filho de pessoa importante havia sido baleado na cidade e ele fora chamado para salvar o jovem. Com urgência, o doutor deixa a festa para prestar o socorro e depois de quase uma hora chega ao hospital. Ali ele se depara com a família do jovem, em desespero. O pai do moço pensou alto e disse: “Esse crioulo vai pôr as mãos no meu filho? Ainda mais com esse jeito de quem bebeu em festa!”
Dr. Alencar, com a humildade dos grandes, examina o moço baleado e ordena: “Preparem-no para a cirurgia. Vamos extrair os projéteis e estancar-lhe a hemorragia”. Com seus ouvidos aguçados, o médico ouvira as ofensas que recebeu e educadamente convocou a família ao consultório. De forma resoluta, Dr. Alencar coloca o receituário sobre a mesa e diz: “Vejamos se o negro embriagado que vai operar seu filho com esse bisturi, tem a mão firme para cortar na medida certa. Vou cortar a primeira folha deste bloco de papel sem riscar a segunda e se isso não acontecer, rasgarei o meu diploma de médico!” A apreensão foi geral.
Num só golpe o doutor cortou a primeira folha do bloco e a segunda ficou intacta. Todos caíram o queixo, aplaudiram-no e a cirurgia foi um sucesso. Mas o doutor negro não estava cheirando a álcool? Alguém cobrou por ele aquela injúria. Dr. Alencar sequer ingeria álcool e ali deixou o exemplo de que a pessoa e o profissional formam um só ser. O conhecimento blinda esse ser contra a discriminação. A cor da pele é apenas um detalhe.
(*) Presidente do Fórum Permanente dos Articulistas de Uberaba e Região; mebro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro