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Desmames

É preciso o desmame, antes de concluirmos. A frase entrou em seu ouvido

Gilberto Caixeta
gilcaixeta@terra.com.br
Publicado em 22/04/2014 às 18:28Atualizado em 17/12/2022 às 09:46
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É preciso o desmame, antes de concluirmos. A frase entrou em seu ouvido e repousou-se em passado não tão próximo. Lembrou-se da época de abandonar os peitos da mãe e se viu de olhos fechados, com a boca agarrada àquele mamilo a sugar despreocupadamente, exceto o de se saciar. Ao final do mamo, era posto no ombro da mãe, que o acariciava com leves palmadas em suas nádegas até que arrotasse. O desmame foi sofrido para ele e para a mãe, que tinha leite para amamentar várias crianças, era ama de leite. Doadora de leite em tempo real. Seu desmame o fazia cheirar a roupa da mãe, enfiar as mãos até encontrar os seus seios. Depois, foi a vez das fraldas. O ensinamento era diário para que ele usasse o penico. Mas preferia a fralda ao penico, e ela lá ensinando-o a defecar e a urinar naquele pequeno vasilhame. Ele tinha nojo de suas fezes. Quando vinha a vontade, fazia ali mesmo, na fralda. Depois, era só gritar por ela e vê-la à sua frente a limpá-lo. Com os anos se passando, era premente abandonar as fraldas e ter autonomia de controle de suas necessidades naturais. Foi um custo para entender que era na privada o local definitivo de suas fezes e urinas. Aprendeu. Agora, ao ouvir a psicóloga falar da necessidade do desmame para concluir as sessões, percebeu que poderia haver essa outra dependência. A propósito, sempre foi um dependente. Quando jovem, não era de ficar pondo reparo em pessoas que passavam, mas não deixava de observar a arquitetura das casas. Ficava minutos diante de uma casa, observando-a. Certo dia, o proprietário de uma residência foi interrogá-lo para saber por que ele ficava ali na frente de sua casa a observá-la. Gostava de arquitetura, dos desenhos das casas que formam esse quebra-cabeça urbano. As ruas de sua cidade passaram a compor o seu imaginário criativo. O dia que não pegava papel e lápis e desenhava por horas não se sentia realizado. Quando pensou em ter algumas sessões com uma psicóloga, estava era querendo alguém com quem pudesse compartilhar seus medos e imprevisões cotidianas. Nada o removia desse seu desejo. Todas as terças-feiras ele estava lá, na hora marcada. Falava de suas coisas, de seus pensamentos conflituosos, de seus medos e das suas dificuldades. O seu desapego material era grande, o mesmo não ocorria com os costumes diários. Com a psicóloga, ele pôde se abrir e, assim, começar a ver as coisas e os outros com um olhar menos real, no entanto, racional. Deixou de idealizar pessoas e passou a compreendê-las em seus mares de complexo pantanoso dos sentimentos. E, principalmente, as suas lembranças do desmame se distanciaram, tornando-se uma alegre recordação. Só conseguia ler o seu jornal sentado no vaso. Os objetos de decoração em sua casa tinham que estar sempre no mesmo local. O colarinho da camisa tinha que estar impecável, somente assim a usava. Precisava se desmamar desses apegos. Creio que você está pronto, melhorou muito. Só precisamos marcar mais algumas sessões para fazermos o nosso desmame. Era um dependente.

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