Conheci um casal admirável. Ele, um sapateiro caprichoso, trabalhador, responsável e incansável. Ela, uma esposa dedicada, meiga, de um humor sem igual. Um dia, os exames disseram a ele, que o (a) diabete lhe havia acometido. Apesar dos cuidados, progrediu e por fim, parte de sua perna até o joelho lhe foi amputada. Mesmo assim, continuava sendo aquele sapateiro caprichoso, trabalhador responsável e incansável. Trabalhava em um alpendre ao lado da cozinha da casa onde moravam. Em razão daquela cirurgia, certos movimentos embora simples, agora lhes eram mais difíceis. Chamava pela esposa que de imediato dele se aproximava lhe dizendo com aquele invejável humor: —“Pronto senhor Américo. Diga-me tudo. Não me oculte nada.” Para a minha sorte, sua filha hoje minha esposa, repete o mesmo quando lhe chamo. Tenho que parece ser o mesmo que dizer: “DIGA-ME TUDO ENQUANTO ESCUTO.” Quando dormimos no desconhecido sono da morte, mesmo que se grite junto aos nossos ouvidos agora surdos, será inútil. Não escutam mais. Certa ocasião estive em um velório de uma criatura muito amiga. Quase que diariamente ia a sua casa. Sua esposa, diferente dele, sempre me parecia sem assunto e pouco bem humorada. Naquele velório, debruçada sobre o amigo sem vida, murmurou aos seus ouvidos, mas eu ouvi lhe dizer que o amava muito. Pobre amigo que por certo esperou a vida toda aquelas duas palavras. Naquele momento, me esforcei para não lhe dizer: —“ Agora, ele não lhe escuta mais, dona Ismália. A senhora deveria lhe ter dito isso, quando os ouvidos dele, ávidos por essa confissão, ainda escutavam. A senhora nunca encontrou esse momento para fazê-lo feliz.”. Fico sempre me lembrando da dona Ismália, quando a beira do túmulo ou em momentos outros, rasga-se descrição elogiosa a aquele que nada mais escuta. *“Nunca ergui a voz sobre um túmulo, parecendo-me sempre que o silêncio é a linguagem de nos entendermos com os mistérios dos mortos.” Exatamente. Que sentido faz exaltar-lhe agora os dotes? Quem o conheceu, sabe disso. Quem não, nada modifica. Parece que o mundo se acha repleto de donas Ismálias. O ser humano ainda é incapaz de um elogio em tempo devido. Quantos feitos, quantos trabalhos literários passam sem aquele aplauso que incentiva prosseguir? Pela televisão, escutei e (tenho gravado), o maestro Diogo Pacheco, regente de óperas, elogiando o comportamento dos três tenores; José Carreras, Plácido Domingo e Luciano Pavarotti. Dizia ele, ser dos tempos doutros intérpretes de óperas que não se queriam ver. Queriam distância um do outro. Elogio, pelo amor de Deus. Era coisa que desconheciam. Magnífico convívio desses três. Não demonstram inveja, nem o receio de um superar o outro. Em uma apresentação, Luciano Pavarotti enxuga a testa de José Careras. Que gesto emocionante, disse o maestro. De fato, hoje esse comportamento é raro. Os artistas, também os escritores, principalmente estes, hoje se desconhecem—diferente dos tempos de Grandes Penas. Lemos que nada escondiam. Se merecesse, era aplaudido. O que era preciso dizer, diziam enquanto os ouvidos ainda escutavam—eram verdadeiros. Dias atrás, conversando esse assunto com um alguém que por vinte anos é articulista de um jornal, me disse nunca haver recebido nesse tempo todo, manifestação alguma por isso. Acreditei e muito. Pensei comigo sem manifestar: É... Se um dia quiserem falar de mim, não esperem que os meus ouvidos estejam surdos. DIGAM-ME TUDO ENQUANTO ESCUTO. *Machado de Assis- Discurso de despedida da Academia de Letras.
Novo Manual de Português- Celso Pedro Luft-página 623
(*) Odontólogo; ex-professor universitário
