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Evódio e a barata

Atravessei a rua para conversar com Evódio

Gilberto Caixeta
gilcaixeta@terra.com.br
Publicado em 21/01/2014 às 20:22Atualizado em 19/12/2022 às 09:22
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Atravessei a rua para conversar com Evódio. Foi um encontro da casualidade, onde encontramos pessoas sem que, previamente, pensássemos nelas. Há momentos que pensamos firmemente em alguém e ele aparece à nossa frente. Purificar os pensamentos e escolher em quem pensar faz parte da higiene pessoal diária. Lá estava ele, com olhar perdido no tempo a observar os objetos inanimados que compõem a natureza animada. Sua mão enfaixada dava-lhe um ar de desproteção, chamando atenção para aquele roliço de gazes a envolvê-la. Quando vemos pessoas machucadas, com olho roxo, pé enfaixado, a nossa reação inicial é sempre perguntar o que aconteceu. Os machucados deveriam andar com um protocolo explicativo das suas avarezas, para quando for necessária a explicação é só ler, ante a fila de curiosos. Comigo não foi diferente. Ele sorriu um sorriso sarcástico e começou a relatar a sua savana domiciliar com uma barata. “Sabe, né..." – disse-me Evódio, iniciando o seu relato. Começo de ano é sempre bom limpar gavetas, se livrar de incômodos e manter o que for importante. Estava lá eu na minha tarefa, rasgando papéis e guardando outros quando surgiu uma barata toda assanhada no meio do quarto. Cascuda, marrom, as suas antenas eretas demonstravam uma disposição ao drible e a corrida com obstáculos. Fiquei quieto, afirmou Evódio. Olhei para um lado, para outro, procurando um objeto que pudesse esmagá-la sem opção de erro. Ao meu redor só havia uma bolsa, dessas pequenas, com alça, nem lembrava mais que a tinha, continuou Evódio em seu relato. Ela estava lá jogada ao meio dos objetos que seriam expurgados. De olho na barata, estiquei o braço até alcançar a bolsa pela alça e a arrastei vagarosamente, enquanto a observava a me observar. As suas antenas tornaram-se ligeiras e as suas perninhas flexionadas para disparar a qualquer instante de vacilo de minha parte. Enrolei a alça da bolsa em minha mão e, de um movimento ninja, a rodopiei no ar e a lancei presa a minha mão com toda força em cima da barata. Acertou? Essa sua pergunta em nada contribui, porque o fato já ocorreu. É que estou curioso, respondi a ele. Então vou para o final da história. Não, pode ficar à vontade em seu relato. Calculei tão mal, que o meu dedo chegou ao chão antes da bolsa atingir a barata. Bati com tanta força que quebrei o mindinho da mão. Olhei a mão dele e lembrei-me da época que tinha que decorar os ossos do ded falange, falanginha e falangeta. E nas brincadeiras os nomes dos dedos; mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura-bola e mata-piolho. O mata-piolho está em desuso, enquanto o pai de todos compõe o imaginário da resistência daqueles que precisam fazer exame de próstata. Ao final morreu a barata? Perguntei ao Evódio. Que nada, olhou para mim, mexeu as antenas e saiu em desfile pelo espaço como se fôssemos amigos a conviver com as diferenças.

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