Mundo passou por transformações importantes nas mais diferentes esferas, e o ser humano vive uma nova realidade
Bárbara foi uma das pessoas que viu sua vida mudar completamente na pandemia (Foto: Fred Magno/O Tempo)
Terça-feira, 31 de dezembro de 2019. Com o ano prestes a virar, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitia um alerta sobre a existência do Sars-Cov-2 e seu potencial pandêmico. Em março de 2020, a pandemia da Covid-19 já era uma realidade. De lá para cá, o mundo passou por reviravoltas, e os impactos da crise, negativos ou não, ainda são sentidos nas mais diferentes esferas.
Setores e empresas ainda se recuperam do baque econômico e pessoas que foram infectadas relatam sequelas ainda persistentes. A cultura organizacional de diversas empresas mudou com a adoção do home office, e o empreendedorismo virou alternativa para escapar da crise. Há quem diga que hoje estamos diante do que poderia ser chamado de “novo normal”, tão falado no período pandêmico.
De acordo com a pesquisa "Epicovid 2.0: Inquérito nacional para avaliação da real dimensão da pandemia de Covid-19 no Brasil", apresentada pelo Ministério da Saúde neste mês, a pandemia trouxe efeitos devastadores na economia familiar dos brasileiros. A insegurança alimentar afetou 47,4% dos brasileiros - que não tinham a garantia de prover seu alimento diariamente. Além disso, cerca de 34,9% perderam o emprego e 21,5% interromperam os estudos.
Ao menos 48,6% dos entrevistados relataram uma redução na renda devido à pandemia. Uma delas foi a empresária Bárbara d’Alessandro, que teve o salário suspenso após a empresa em que trabalhava aplicar a Medida Provisória (MP) 936/2020, que permitia a suspensão de contratos e a redução de salários e jornadas. Com o valor do auxílio do governo, cerca de R$ 1.000, ela começou a pensar em alternativas para fechar as contas.
“Meu marido já tinha know how com a venda de planos de saúde, e essa área estava tendo muita demanda por conta da crise sanitária. Decidimos empreender juntos e, em setembro de 2020, larguei de vez a carteira assinada. Começamos em um quartinho e fomos evoluindo. Hoje, temos nosso próprio escritório e uma equipe grande. Temos cinco funcionários registrados e 25 freelancers”, conta.
O crescimento da demanda na pandemia, sem dúvida, ajudou o negócio de Bárbara. De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o Brasil encerrou 2021 com 48.995.883 usuários de planos de saúde - um incremento de 3,18% em relação ao ano anterior. Em um ano, as empresas ganharam mais de 1,5 milhão de novos clientes.
Segundo ela, o mercado continua aquecido e os planos para o futuro são de expansão. “Atendo quem deseja contratar ou os que vão trocar para um plano mais acessível após perderem renda. Demanda não falta, tanto que pretendo contratar mais dez funcionários de carteira assinada em 2025.” Segundo a ANS, o setor encerrou 2023 com 51.081.018 usuários - primeira vez que o segmento supera a marca dos 51 milhões de clientes.
Economia ainda apresenta “sequelas”
Apesar do aquecimento do setor de planos de saúde, outros segmentos até hoje não se recuperaram totalmente dos efeitos da crise. Gabriela Martins, economista da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (Fecomércio-MG), aponta que o segmento mais prejudicado foi o de livros, jornais, revistas e papelaria - que tem apresentado resultados 46,6% inferiores ao período pré-pandêmico.
"Também podemos citar o setor de vestuários, calçados e tecidos, com resultados 17% piores. A expectativa é que os setores do comércio e de serviços continuem crescendo, mas com um ritmo menos acelerado. Esperamos maior nível de inflação e taxa de juros para 2025, o que pode levar a um desaceleramento natural da economia", analisa.
Para João Gabriel Pio, economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), turismo e eventos também não atingiram ainda os níveis pré-pandemia. “Em Minas Gerais, os efeitos poderiam ter sido ainda mais graves se não fosse pela manutenção da indústria como atividade essencial. Isso foi decisivo para evitar interrupções mais profundas na economia”, afirma.
Marcelo de Souza e Silva, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), relembra que muitas lojas, bares e restaurantes não sobreviveram à pandemia. Ele cita como exemplos o restaurante La Greppia, que fechou as portas após 25 anos, e a Loja Lua de Mel, que encerrou as atividades após quase quatro décadas de funcionamento.
“Infelizmente, esses estabelecimentos tão importantes para a história e a economia da cidade não retornaram. O comércio como um todo, em especial do centro, ainda não voltou ao status pré-pandemia”, lamenta.
Mas, apesar das perdas, ele afirma que o setor tem se recuperado aos poucos. “De janeiro a outubro deste ano, o comércio da capital obteve um saldo positivo de mais de 3.000 vagas formais. Em 2020, para lembrar, foram quase 8.000 desligamentos. Nos dois últimos anos, as atividades do setor cresceram, sendo que em 2022 o crescimento foi de 1,34% e em 2023 de 1,36%. Estamos otimistas, projetamos um avanço de 2,78% em 2024”, afirma.
Já Ricardo Teixeira, especialista em finanças e coordenador do MBA de Gestão Financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV), pondera que não se trata apenas de uma questão de voltar aos resultados da pré-pandemia. “E o que você não cresceu todo esse tempo? Então, o prejuízo na realidade, ele é incalculável. Ele é um prejuízo enorme porque você teria que levar em consideração o crescimento que deixou de existir por conta da Covid”, explica.
Mas ele vê o momento atual com bons olhos. “Tenho percebido um espírito de volta ao normal. Você vê as pessoas frequentando mais os lugares e, com isso, consumindo muito mais. Embora a gente não possa dizer que voltou ao nível que estava no período anterior à pandemia, esse momento é encorajador para o empresário”, avalia.
Frutos positivos, apesar do caos
Mesmo que as consequências para a economia tenham sido graves, os especialistas são unânimes ao apontar que a crise também trouxe ganhos e acelerou processos que, provavelmente, demorariam mais tempo para acontecer. Para a economista da Fecomércio-MG, o período foi importante para acelerar o comércio digital. “Os grandes players aprimoraram vários processos logísticos, enquanto os pequenos empresários passaram a adotar o atendimento online”, analisa Gabriela.
Já o presidente da CDL/BH aponta como pontos positivos o refinamento do atendimento ao cliente, que passou a ter novas necessidades, e as novas formas de pagamento, como o Pix, que facilitaram as transações comerciais à distância. “O comerciante entendeu que pode expandir seu atendimento e não precisa se restringir ao local”, aponta Marcelo.
De acordo com a Neotrust, em pesquisa divulgada neste ano, o comércio eletrônico brasileiro cresceu 50% em relação ao período pré-pandemia. Já a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) estima que o e-commerce brasileiro alcance um faturamento de R$ 205,11 bilhões em 2024 - representando um aumento de 10,45% no comparativo com 2023.
Segundo o economista-chefe da Fiemg, a área da saúde também teve avanços interessantes, como a telemedicina. “Outro ponto foi a aceleração da automação e o uso de dados para tomar decisões mais rápidas e eficientes, o que abriu espaço para novas soluções tecnológicas. O trabalho remoto, que era algo pontual para muitas empresas, virou uma realidade ampla e, em muitos casos, uma alternativa viável e produtiva”, diz Pio.
De volta aos escritórios
No mercado de trabalho, o Brasil testemunhou um crescimento histórico do número de trabalhadores em home office. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022 o país registrou 8,5% da população ativa trabalhando neste modelo. O número é mais que o dobro dos 3,4% dos trabalhadores que trabalhavam em casa em 2014.
Mauro Rochlin, economista da FGV, aponta que esse movimento foi importante para mudar os hábitos de consumo. Isso porque, com a possibilidade de trabalhar em casa, houve uma descentralização dos locais de emprego - fomentando negócios em outros espaços, além de aumentar o consumo em lojas online, como os e-commerces. “Essa mudança geográfica das pessoas em relação ao trabalho pode ser marcada como uma transformação importante do consumidor”, diz.
Entretanto, a “promessa” de que a pandemia representaria uma ruptura definitiva com o trabalho presencial não tem se cumprido. Passada a crise, a mesma pesquisa do IBGE aponta que o número de trabalhadores remotos caiu para 8,3% em 2023. Para Alessandra Gasparini, neurocientista e especialista em RH e desenvolvimento de líderes, esse retorno aos escritórios pode dificultar a atração de mão de obra.
“Notamos as empresas numa retomada das atividades plenamente presenciais e a consequência disso é uma fuga de talentos. A flexibilidade ganhou um papel de destaque durante a pandemia, e 2025 vai ser um ano de reavaliar o impacto da volta ao presencial no engajamento e na retenção de pessoas”, analisa.
Saúde nunca mais foi a mesma
No campo da saúde, o legado deixado pela pandemia traz aspectos bons e ruins. Do lado negativo, a pesquisa "Epicovid 2.0" revela que 18,9% das pessoas que tiveram Covid-19 ainda relatam sintomas persistentes da doença, como ansiedade, cansaço, dificuldade de concentração e perda de memória. Mais de 60 milhões de pessoas, cerca de 28,4% da população brasileira, relataram infecção por Covid-19 de acordo com a mesma pesquisa.
Do outro lado da mesa, o infectologista Unaí Tupinambá aponta que o uso da máscara foi uma das boas heranças deixadas após a crise. Segundo ele, trabalhadores da área da saúde estão mais atentos ao uso do acessório e muitos pacientes, até mesmo os assintomáticos, colocam a máscara quando precisam ir aos centros de saúde.
“Além disso, passamos a prestar mais atenção às outras doenças. Eu acho que a gente desprezava um pouco as infecções das vias aéreas. Mas, a própria gripe, que é vista como algo corriqueiro, também pode levar a alguns quadros mais graves, principalmente em populações mais vulneráveis”, diz.
Tupinambá também aponta que a crise serviu para que boa parte da população valorizasse mais o papel do Sistema Único de Saúde (SUS), que foi essencial, por exemplo, no processo de vacinação. Temos que ter orgulho e cobrar das autoridades para termos um SUS cada vez mais bem estruturado, para que ele seja ainda melhor do que já é.”
Fonte: O Tempo