Mesmo diante de conquistas recentes, estruturas de poder seguem empurrando corpos negros para as margens
Jeniffer Dias como Irene na peça 'Os Irmãos Timótheo da Costa', que resgata as histórias de João e Arthur Timótheo da Costa, dois pintores negros que foram precursores do modernismo no Brasil (Foto/Luiz Antonio Pilar/Divulgação)
Embora seja perceptível que, sobretudo na última década, políticas públicas inspiradas e pressionadas pelo movimento negro tenham aberto caminhos para que mais artistas, intelectuais, pesquisadores e personagens negros conquistassem espaço, legitimidade e centralidade em diferentes áreas da produção cultural, é também evidente que ainda há muito a ser feito. Basta lembrar que, em 128 anos de história, só agora a Academia Brasileira de Letras (ABL) passa a ter uma cadeira ocupada por uma mulher negra: Ana Maria Gonçalves, autora do consagrado “Um defeito de cor”, que em seu discurso de posse agradeceu à sua ancestralidade, “fonte inesgotável de conforto, fé, paciência e sabedoria”.
É diante deste cenário cultural ainda árido para pessoas negras que a atriz Jeniffer Dias reconhece, em entrevista a O TEMPO, lidar com o constante temor de ter sua trajetória escanteada – e, por isso, admite ter grande dificuldade de recusar papéis: “Eu sempre fico com medo de não ter outra chance depois”. O temor, explica, é que venha a sofrer com o mesmo apagamento enfrentado pelos irmãos João e Arthur Timótheo da Costa, dois pintores negros revistados em uma peça estrelada por Jeniffer, que foram precursores do modernismo no Brasil, mas cujas trajetórias e legados foram ignorados pela história oficial.
Diga-se, além da baixa representatividade, há problemas persistentes em relação à qualidade dessas representações, como examina o pesquisador em teledramaturgia Reynaldo Maximiano, tomando como exemplo o tratamento dispensado aos personagens negros e negras nas refilmagens de “Vale Tudo”. Em um levantamento, o estudioso analisou não apenas a presença numérica de atores negros, mas o desenvolvimento dramático de seus personagens, constatando que, embora tenha havido um ganho quantitativo – em 1988, a novela contava com dois atores negros, Zeni Pereira e Fernando Almeida, número que saltou, em 2025, para 20 –, isso não significou um distanciamento dos estereótipos.
“Eu fiz essa análise considerando o objetivo desses personagens na trama e os espaços onde circulam. A maioria não tinha objetivos definidos”, examina, acrescentando que o mais grave é o caso da protagonista Raquel Acioli, vivida por Taís Araujo, exposta a altos e baixos financeiros, com uma resiliência incomum para começar do zero: “Ela, a mocinha, foi esvaziada até diante de seu contraponto imediato na trama, Odete Roitman, a vilã”.
Mas, mesmo casos problemáticos como o da novela, agora, já não passam despercebidos. Tanto que a própria Taís Araújo admitiu, em entrevista à revista “Quem”, ter ficado frustrada com o esvaziamento da trajetória de sua personagem, que praticamente desapareceu nas semanas finais da novela. Antes disso, levou sua insatisfação à autora, Manuela Dias, o que gerou um atrito – e, depois, uma troca de queixas formais ao compliance da emissora.
Segundo a imprensa especializada em TV, Taís relatou que vinha sendo pressionada por entidades do movimento negro, decepcionadas com o tratamento dado à protagonista. Ela então procurou a autora do remake e, depois, o compliance da Globo com o objetivo de “ajudar a empresa a discutir a forma como mostra pessoas negras em novelas”. Pouco depois, veio a declaração pública. Manuela Dias, então, formalizou queixa contra a atriz, alegando quebra do código ético da empresa.
Representações caricatas são agora alvo de crítica
O caso de Raquel Acioli é especialmente dicotômico: afinal, antes da estreia da nova versão da novela, a escolha de Taís Araujo para o papel – vivido originalmente por Regina Duarte – foi celebrada como um acerto, pois parecia simbólico que uma mulher trabalhadora, de origem popular, fosse interpretada por uma atriz negra. Com o desenvolvimento da trama, então, surgiram os tantos problemas. E, claro, esta não é de hoje que as tensões em torno da representação racial emergem na cultura brasileira.
Em 2011, por exemplo, o país debateu o embranquecimento de Machado de Assis em uma campanha da Caixa Econômica Federal que comemorava os 150 anos da instituição. As críticas à peça publicitária logo se espalharam pelas redes e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir) chegou a divulgar uma queixa formal. Após a repercussão, o banco retirou o comercial do ar e pediu desculpas.
Anos antes, porém, casos semelhantes não chegavam a provocar tamanha reação. É o que se viu em 1998, quando Matheus Nachtergaele foi escalado para interpretar Cintura Fina na minissérie Hilda Furacão – outro exemplo de embranquecimento e apagamento de personagens históricos negros.
Se hoje reações como a que levou à retirada da campanha da Caixa do ar são mais rápidas e contundentes, isso não acontece por acaso. Para a pesquisadora e curadora em cinema Tatiana Carvalho Costa, esse tipo de resposta pública é parte de um processo longo, que vem ganhando corpo graças à atuação constante do movimento negro.
Citando pesquisas da ex-ministra da Igualdade Racial Nilma Lino Gomes, ela identifica nesse fenômeno a expressão do chamado “Movimento Negro Educador”. “Estamos falando de um movimento que assume um papel mobilizador de tecnologias sociais para a mudança, que é também um grande educador da sociedade, que a faz olhar para si mesma a partir dessas ferramentas para combater o racismo”, afirma.
Segundo ela, muitos dos avanços que vemos hoje – inclusive a capacidade de a sociedade acolher melhor questionamentos sobre representatividade e apagamento – são fruto dessa atuação contínua. “Há décadas lutamos para desconstruir estereótipos. Então, existe hoje um letramento maior de parte da sociedade para fazer esses enfrentamentos”, aponta. Mas Tatiana pondera: “Isso tudo é extraordinário, mas ainda é pouco se olharmos a discrepância do poder econômico”. E cita o caso da Globo, que, diante da polêmica sobre Vale Tudo, “optou por manifestar um apoio tácito à autora”. “Ou seja, estamos sempre esbarrando na lógica desse poderio econômico”, constata.
Momento de inflexão
Para Tatiana Carvalho Costa, presidenta da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) no biênio 2023-2025, vivemos hoje uma fase paradoxal: “Há um avanço importante, mas há distorções na representação”. O problema, afinal, também é estrutural. “O avanço das ações afirmativas na cultura, no audiovisual, sobretudo no cinema, é muito importante, mas precisa vir acompanhado de maior conscientização da sociedade e de uma melhor preparação de agentes públicos para operacionalizá-lo”, analisa. Isso porque, segundo ela, o cenário ainda é frágil e permeável a abusos. “Há muitos caminhos para fraude e violência política”, alerta, mencionando, por exemplo, casos de autodeclaração racial fraudulenta e descumprimento de instruções normativas que exigem distribuição mínima de recursos para realizadores negros em editais públicos.
Fonte: O Tempo