Estimado leitor, localizada no extremo leste da Rússia, a península de Kamchatka é uma das regiões mais geladas do planeta. Ali se encontra uma das mais instáveis cadeias magmáticas da Terra, com intensos tremores e mais de cem vulcões, sendo que mais da metade são potencialmente ativos e alguns estão em franca erupção.
A região foi, durante a Guerra Fria, um ponto militar estratégico. Mais próxima geograficamente dos EUA que de Moscou, foi mantida como zona militarizada, proibida a turistas, até o desmoronamento da antiga União Soviética, em 1991.
Kamchatka (2002) é também o nome de um dos mais importantes filmes sul-americanos, pois trata com muito cuidado o drama vivido por quem foi perseguido pelas forças de repressão da ditadura argentina. Nos dias que sucedem o golpe militar de 1976, uma família com oponentes do novo regime precisa deixar para traz a sua casa, os seus nomes civis, as suas rotinas. Fogem, então, para um sítio no extremo sul da Argentina, onde precisam viver constantemente em alerta.
O filme constrói toda a narrativa numa espécie de flashback, usando o recurso de apresentar o final ao expectador logo nas cenas iniciais. O artifício, entretanto, não compromete o desenvolvimento da história, e sim nos oferece uma forma menos óbvia de apreciarmos o enredo. O filme também não é mais uma obra a respeito de guerrilhas e ditaduras, com heróis, mortes e explosões, mas de um retrato sensível e humano, em que a política serve apenas de pano de fundo.
O diretor Marcelo Piñeyro já havia tratado do assunto quando produziu o inquietante A História Oficial (1985), que foi o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro no ano seguinte. Entrementes, na época, apenas dois anos após o fim do regime militar, o tema se mostrava urgentemente dramático, pulsante. Hoje, quando Piñeyro decide assumir a autoria do novo projeto, o tema pede uma abordagem mais delicada.
Mas como contar uma história de crueldades sem ser cruel? O grande mérito de Kamchatka é fazer da personagem do excelente ator mirim Matías Del Pozo o narrador da trama. De início, o garoto não entende a realidade que o cerca e isso abre espaço para uma série de metáforas. Por exempl ele gosta de assistir aos filmes norte-americanos, repletos de naves alienígenas; logo, os Exércitos são vistos como invasores espaciais. E quando o pai sugere a toda família que troque de nomes, o menino logo adota o pseudônimo de Harry, em homenagem ao seu ídolo, Houdini (1874-1926), o mestre das fugas e dos esconderijos.
Por isso, muito mais do que uma simples região geográfica, Kamchatka pode ser também um local de resistência, de esperança, um lugar do qual todos devem se lembrar, sempre que se sentirem sozinhos ou em perigo.
Bom domingo a todos.
(*) doutorando em História e professor do Colégio Cenecista Dr. José Ferreira, da Facthus e da UFTM mailtmozart.lacerda@uol.com.br