(Voltar naquela praça – mesmo que eu chore...)
Hoje, palmilho cheio de recordações das coisas vividas em Jardinópolis. Um lugar no mundo, onde andei descalço, de calças curtas e que me viu crescer. Junto também doutros descalços e de calças curtas, formávamos um bando de amigos inseparáveis. Éramos pontuais em tudo; até na porta do cinema para assistir grandes faroestes com os reis do gatilho. Lembro-me ainda de seus nomes. Copiando-os, carregávamos um revólver de madeira na cintura da calça suja. Alguns de nós, até dois; um de cada lado, no igual daqueles reis do gatilho. O dia inteiro numa correria medonha, dando tiros com a boca, surpreendíamos um distraído, apontando-lhe o revólver e ordenando-lhe: “Mãos ao Alto,” no igual daqueles do cinema. Por vezes, de mentirinha, imitávamos as brigas deles. Havia também o Xerife. Como no cinema, o xerife portava uma estrela de metal presa na camisa, também o nosso xerife portava uma tampinha dessas que vêm nas garrafas de cervejas. Tirávamos a rolha que ficava por dentro e, com ela, prendíamos a tampinha na camisa do nosso xerife, que se revezava entre nós. Durante o dia, depois das aulas e dos deveres, era esse o nosso divertimento.
Algumas vezes, juntos no jardim da estação ferroviária, por lá ficávamos até que o trem das vinte horas passasse. Não sei até hoje, o que havia de novidade em ver aquele trem passar – mas, não éramos somente nós. Muitas mocinhas também por lá ficavam, certamente para ver outros mocinhos na esperança das ilusões. Logo elas se retiravam. Nós por lá ainda ficávamos sentados na calçada, contando coisas diversas. Como eu morava perto da estação, minha mãe algumas vezes foi me buscar pelas orelhas para o banho e jantar. Aquela estação possuía um guarda noturno. Era gordão, bem moreno e forte, com algumas verrugas salientes e pretas, tanto na testa como nas faces. Usava um boné parecendo de couro de cor preta e bem usado. Vinha de quando em vez juntar-se a nós, participando das nossas conversas.
Como sempre, trazia no cinto coberto pela camisa, um revólver de verdade. Todos nós adorávamos que ele chegasse para que pudéssemos ver aquele danado bem pertinho da nossa curiosidade. Assim que se acomodava também no meio-fio rodeado por nós, logo encobria com a mão aquele dito cujo. Mesmo assim coberto, não tirávamos os olhos dele. Ele fingindo-se de bobo, esperava a nossa solicitação para vê-lo de perto e lhe colocar a mão. – Deixa sô Zé!?... Deixa nós ver esse danado direitinho. – Não... Não, é muito perigoso, respondia sempre. Mas, não suportando a nossa insistência, deixava que cada um colocasse a mão no danado, sem tirar as suas dele. Logo, as nossas mil perguntas curiosas: Se ele era pesado? Se quando se dava o tiro saia fumaça no cano? Se à noite ele dava muitos tiros? Finalmente, respondia: — Dar tiros? Aqui não... – Por que não, sô Zé? – Porque aqui não é bom. Continuava: bom mesmo era lá em Jaboticabal, onde eu trabalhava. Lá sim, opa!... Lá, a gente gastava uma caixa de balas por noite. Ouvir dar tiros e gastar uma caixa de balas numa noite, que graça hoje tem? Mas para nós naquela idade, era uma alegria que nos fazia lembrar as cenas do cinema. Que criancice! Coisa da nossa ingenuidade. Tudo é saudosa lembrança. Enquanto a conversa acontecia, os ponteiros sem descanso, marcavam a hora do debandar. Partíamos satisfeitos por haver visto de perto, um danado de verdade. Se Deus me der tempo, quero voltar naquela praça. Não importa mesmo... Não importa que eu chore.
(*) Odontólogo; ex-professor universitário