A reforma ortográfica pactuada entre os países onde a língua portuguesa é oficial atende o corpo diplomático e a segmentos da intelectualidade linguística que em nada convivem com o estrato social desses países. Ficam em suas academias e no mundo político, alheios ao quotidiano social. Talvez, quando essa proposta entrar em vigor, ela não será tão necessária mais, porque chegaremos à conclusão de que a dificuldade no falar não esteja na acentuação das palavras, nos hífens e muito menos no trema – que, por sinal, dá à palavra certa beleza –, e sim no conceito da palavra que se usa ao se dialogar.
No Brasil, a palavra pode expressar ideias as mais diferentes, enquanto que em Portugal a palavra tem um uso literal, ou seja, é aquilo que se diz. Estávamos ao balcão de um posto de paragem, no caminho entre o Douro e Minho, quando o meu amigo começou a cantar – talvez pela eterna saudade que nos acompanham quando viajamos nas mais diferentes carruagens de nossos corpos. “De quem eu gosto nem às paredes confesso...”. Quando lhe perguntei quem cantava essa música, o senhor do outro lado do balcão não aguentou. Olhou para mim e disse: Que eu saiba, não é ele, ele não está a cantar? Fiquei bobo, não pela intromissão, que em nada nos incomodou, mas pela sua sinceridade preocupante em querer me alertar sobre quem cantava aquela melodia. Achei que era uma piada, mas não era e não é, meus caros.
De volta ao ônibus que nos levava a Vila Real, esqueci aquele assunto. Ao chegar ao nosso destino, o motorista nos comunicou que as tantas horas deveríamos estar no local para prosseguirmos com nossa viagem. Foi quando lhe interroguei se seria naquele mesmo ponto aonde ele havia nos deixado. Sim, disse-me, desde que ele esteja vago, se não, não. Comecei, então, a entender a literalidade dos portugueses. Usam das palavras em seu sentido literal. Não há equívocos, não há segundas interpretações ou entrelinhas em suas falas. O falar é a expressão do que querem expressar e o outro deve entender na expressão da palavra, e não da entonação da palavra, do olhar, ou seja, lá não é como no Brasil. Quando entrei em uma sapataria e pedi que trocassem as palmilhas de meus sapatos porque já estavam por demais desgastadas, não é que caí das pernas ao ver aquele velho senhor de bigodes entrando com as mãos na boca dos calçados a pegar a palmilha e enfiar no outro sapato? Trocava mesmo a palmilha, quando eu queria que ele substituísse aquelas antigas por novas. A palavra é a expressão do sentimento que se expressa na cultura do falar.
Em pouco ou nada adianta ter um vocabulário rico, se as palavras se perdem ao longo de seus erros gramaticais, cuja única preocupação é a forma, que não deve ser desprezada, mas não se escreve e nem se expressa na ausência do que se falar. A mudança ortográfica promovida pelo Brasil- Portugal e os países de língua portuguesa africana e do Timor Leste em nada nos aproximarão, porque temos culturas diferentes na utilização das palavras. Agora, existem palavras com sentidos diversos entre nações, como é o caso da palavra fila, que em Portugal se chama bicha. Ou quando chamamos os nossos pequenos de crianças e os portugueses os chamam de miúdos, e assim acontece com tantas outras palavras de mesma grafia, mas com ideias completamente diversas entre esses países. A linguagem é fruto do relacionamento histórico, dos impactos culturais das absorções e perdas, e não canetadas diplomáticas que tentam impor uma questão longe da realidade vivida por uma sociedade.
Os portugueses creem que as mudanças na ortografia foram fruto da vontade única do Brasil, enquanto que não acreditamos nesta hipótese por mais que afirmamos o contrário. Assim caminha o nosso patinar educacional, com seus modismos e absurdos diplomáticos postos goela abaixo, enquanto não conseguimos avançar em uma educação que contemple uma maioria que vive à margem da sociedade por não ter acesso a um saber ministrado com eficiência.
Portugal vai bem, inobstante à crise, porque a sua história está impregnada por onde se anda, e não estão nem aí com a reforma ortográfica, mas chateados com Lula e com Sócrates.
(*) professor