Não me lembro com precisão – afinal minha vida iludida e ignorante não dava o valor igual a todos os homens...
Não me lembro com precisão – afinal minha vida iludida e ignorante não dava o valor igual a todos os homens. Havia os bons, líderes de turma na competência de derrubar mato e formar fazendas, e recebiam mais em salários e atenções. Havia tristemente o grupo dos ignorantes, desorientados, em grupos por vezes violentos, que apenas serviam na brutalidade de derrubar e queimar mato e acabar com a pinga do Batista, lá na reta da estrada. A violência matava alguns, mas o importante era a mortandade da maleita no início das águas, águas empoçadas cheias do mosquito maligno, ausência de cuidados preventivos e aos enfermos. Nosso projeto era subsidiado pela Sudam, e isto nos permitia uma enfermaria de tratamentos e medicação preventiva no campo – e natural preferência dos trabalhadores. Entretanto, era de doer ver os casos perdidos que chegavam a Pontes e Lacerda em caminhões, vindos lá do fim do mundo, morrendo sem a assistência no campo e recursos tardios na vila de Lacerda. Orozimbo, nosso gerente de campo, cuidava do nosso pessoal. Era grosso e exigente, se preciso educava no cacete o peão que não tomava seu remédio. Foi ele que me transmitiu o título desta crônica, nascida em Lacerda pela boca do “enterrador de gente”, como ele chamava os coveiros da vila. O caixão chegava com os defuntos do dia, eram descidos para a moradia final em cova rasa e de terra. Esqueci o nome do controlador, que vivia de porre (com toda razão!). Só me lembro e sei do que Orozimbo dizia ser seu encaminhamento do defunto, gritando alto, talvez para o governo escutar: lá vem mais um pro cascai!!! Hoje sei que Pontes e Lacerda é outra cidade, com hospital, médicos e boa assistência do poder governamental. Doentes podem morrer, mas “não vai mais pro cascai”. Lacerda chegou à maioridade cívica. Agora, meu suave e amigo leitor, por que uma crônica tão negra e ultrapassada? Bem, estou acima dos oitenta, não tenho mais medo (e respeito?) de tudo. Tudo isto, com tristeza, me compara minha cidade a Pontes e Lacerda. Simples, não necessito provar, o povo, os exames de sangue confirmam: Uberaba vive o pior episódio de dengue que já assisti. Publiquei: 50% dos exames em nosso hospital para diagnóstico de dengue deram positivo, e veja que um negativo hoje pode ser positivo em segundo exame. Uns quinhentos pacientes, companheiro! E tem gente que acha: isto não é muito, doutor João!... Bem, se der na sua casa... Gente, a cidade tem milhares de águas paradas criando o mosquito transmissor. O que está esperando o nosso governo? Deus queira que não seja “mais um pro cascalho”. Para encerrar: a participação popular no entender e ajudar é insuficiente. Importante é a fumigação via fumacês e inseticidas múltiplas – dia e noite, noite e dia se necessário. O alarme de meus comentários sobre a epidemia atual obedece apenas à minha profissão médica. Não sinto nas autoridades a franqueza e velocidade que são de exigir. O problema não é aumentar cuidados e assistência médica – eles são consequência, não causa. O elo condutor e assassino é o mosquito, sem o qual o vírus não viaja – e a velocidade em eliminá-lo está lenta. Aqui da roça nasce-me uma ideia: por que não usar a pulverização aérea, como faz a Caeté em suas lavouras? Um dia bastará para que toda a cidade receba o tratamento básico, ficando apenas complementar eventuais focos.