Fui curado com chá de sabugueiro. Devia ter uns seis ou sete anos. Escapei da catapora, da coqueluche, do crupe, dos furúnculos, mas não escapei do sarampo.
Muitos anos mais tarde, conheci outro sarampo. Este com letra maiúscula: Sarampo, com todas as honras e privilégios de um nome próprio que se tornaria famoso. Em Araxá ele nasceu e se criou e logo em lenda se tornou. Falo de um cão, pastor alemão, se não me engano. Coisa de uns trinta anos atrás, ou mais. Era um fenômeno, fazia somas, diminuía, dividia e multiplicava. Dois mais cinco, ele latia sete vezes e assim por diante. Não errava nunca. Pela manhã, ia ao Correio buscar a correspondência. Para tanto, levava uma cestinha pendurada no pescoço. Deu várias entrevistas na TV e saía-se muito bem. Não era gente. Era um cão. Qualquer pessoa de mais de quarenta anos pode testemunhar o que estou dizendo. Era um cão "inteligente". Diziam as más línguas que o Sarampo jogava xadrez com seu dono. Mas não era tão bom enxadrista. Em cinco partidas disputadas, ganhava apenas duas.
É conhecido o prazer do dono de um cão em divulgar a "inteligência" de seu animal de estimação. Sutilezas que só os donos percebem. A gente ouve e não discute. Eles se entendem.
Gosto de cães. Gostaria de ter um em casa. Se ainda não o tenho, é por razões de oportunidade. Dizem os entendidos que os cães só se desenvolvem naturalmente quando tem gente ao redor deles. Quando ficam sozinhos, entram rapidamente num processo de estresse. Tornam-se vingativos e pirracentos. Urinam na cama do dono e outras coisas piores. Já pensaram num rotweiller estressado?
Conheço um caso de vingança canina, uma verdadeira cachorrada. Deu-se com um amigo meu. Era professor numa universidade. Preparava uma tese sobre Estruturalismo. Anos de pesquisa e noites em claro. Por necessidade, passou alguns dias fora de casa. Ao voltar, encontrou sua tese totalmente estraçalhada por seu Pincher, cãozinho pequeno fisicamente, mas repleto de maldades e vinganças. Não gostou nada daqueles dias de solidão. E fez o que fez.
O pior é que aquele amigo meu criou um complexo de cão. Tornou-se um cinófobo. Em qualquer um deles via um perigo e enchia-se de ódio. Certo dia viu várias pessoas na praça chutando um cachorro. Foi até lá e (céus!) desfechou um tremendo pontapé no corpo do bichinho. Não quis nem saber por que o agrediam. Naquele momento deixou vir à tona todo seu ódio recalcado. Só não sei se daria um pontapé num pit bull.
Assim são as coisas. Há muita gente por aí aproveitando-se da maré para dar pontapés, a torto e a direito, para extravasar seus recalques, seus ódios congelados, suas frustrações. É gente de muita "coragem", sabem que o cão não vai reagir. Pensam que sua vítima esteja morta. Sabem que não haverá retaliação. Por isso se mostram tão exaltados. Todo mundo conhece esse tipo de gente...