Estimado leitor, a história que contarei é uma das mais tristes que colhi ao longo desses anos, pesquisando sobre a ditadura militar, em especial os chamados Anos de Chumbo. Torná-la pública é importante para que não se repita jamais.
Antonio, importante membro no quadro do movimento estudantil de Belo Horizonte, já havia vivido a sensação de estar sendo seguido com mais intensidade do que naquele dia 24 de dezembro de 1973. Todo militante de esquerda em situação de clandestinidade flertava diariamente com a possibilidade de ser preso e, em função disso, não se descuidava das medidas de segurança. Mas Antonio se descuidou.
Não se sabe como, mas de algum modo passou por sua cabeça que, numa data que inspira tanto o sentimento de fraternidade nas pessoas, os agentes da repressão pudessem dar um fôlego aos guerrilheiros. Pois é... num encontro com outro militante na cidade de São Paulo, não percebeu que estavam sendo seguidos e não viu quando um fusca subiu na calçada e os interceptou. Foram todos parar na Rua Tutóia, sede da Operação Bandeirantes, a Oban.
A pancadaria começou dentro da viatura policial. Normalmente, os agentes repressivos conduziam suas presas ao local do interrogatório, dando os safanões de praxe. Mas dessa vez eles tinham um pretexto para bater mais ainda. O outro militante que fora preso junto com Antonio caiu na bobagem de dizer que era filho de um importante empresário de Franca, cidade do interior do Estado, e que iria exigir uma retratação pública dos agressores, dentre outras coisas.
Na chegada, os dois foram abordados por um sujeito, que, pelas patentes ostentadas no uniforme, deveria ser do alto escalão da caserna. Ouviram quando alguém se referiu a ele como Doutor Tibiriçá. Foi logo se dirigindo para Antonio, dizendo-lhe que, caso ele colaborasse com as investigações, nada lhe aconteceria e logo seria solto. Até mesmo pediu desculpas pelos maus-tratos cometidos pelos agentes da captura.
Antonio, meses antes, havia participado de uma ação armada e era muito procurado pelos militares. Sabia que sua prisão seria muito comemorada, pois as informações que ele detinha eram muito valiosas para os órgãos de repressão. Portanto, não acreditou naquela ladainha e esperou pelo pior.
Levado para uma sala nos fundos da delegacia, Antonio foi logo despido e colocado numa cadeira. Sentou-se à sua frente um sujeito com ar de bom moço, que lhe mostrou uma série de fotografias de outros militantes e lhe perguntou, muito educadamente, se conhecia aquelas pessoas. Antonio reconheceu todas, mas, evidentemente, respondeu que jamais as vira antes. Mal terminou de responder, outro interrogador lhe deu um soco na boca e, a partir daí, todo tipo de tortura foi usado.
Quatro ou cinco horas depois, apanhando sem parar, Antonio apelou para o fato de ser véspera de Natal e pediu para ser levado para uma cela, pois não aguentava mais ser torturado. Os agentes imediatamente pararam de surrá-lo e, olhando um para o outro, disseram, cinicamente, não terem percebido que era um dia tão importante.
Um deles saiu da sala e voltou, instantes depois, com um toca-fitas na mão. Ligou o aparelho e pediu que Antonio ouvisse a música. Com mais lágrimas nos olhos ainda, reconheceu os primeiros acordes de Bate o Sino. A brutalidade recomeçou e Antonio, dois dias depois, em 26 de dezembro de 1976, aos 29 anos, faleceu nos porões do Dops. Teve tempo apenas de contar sua história para Sara, militante de outra organização de esquerda, presa na cela ao lado da sua. Até hoje a família de Antonio luta para encontrar seu corpo.
Bom domingo a todos.
(*) doutorando em História e professor do Colégio Cenecista Dr. José Ferreira, da Facthus e da UFTM mailtmozart.lacerda@uol.com.br