ARTICULISTAS

O furúnculo

Na pele lisinha, aos poucos se formou uma área rósea

Gilberto Caixeta
gilcaixeta@terra.com.br
Publicado em 23/10/2012 às 19:36Atualizado em 19/12/2022 às 16:44
Compartilhar

Na pele lisinha, aos poucos se formou uma área rósea e doída, sem que o corpo percebesse senão sentindo. O incômodo era uma mistura de latejo, que rapidamente era aliviado com a compressa das mãos devido ao olhar atento, com desejo de expelir o que havia sob aquela área rosada. Quando a dor cedia, o esquecimento ocupava e tudo caminhava harmonioso, embora o que ocorria, sob a epiderme, só os labirintos internos da carne sabiam. Ao fato os demais membros eram comunicados por vias indiretas, emanadas da razão. Os olhos acompanham com tristeza a formação, naquela área rósea, de um furúnculo. O corpo todo se ressentiu querendo saber se era dele ou de fora, inoculado por algum vírus. O cérebro, ao perceber através dos olhos, enviava comando às mãos para que os dedos expelissem aquele corpo estranho que se formava e o comprometia em seu funcionamento partidário. Os dedos, quando agiam para cumprir a determinação do comando, eram retidos pela dor que reverberava pelo corpo e, assim, eram recolhidos permitindo que o furúnculo crescesse e desenvolvesse.  Os olhos que a tudo assistia, o máximo que conseguia era amparar as mãos a afagar o espaço adoecido, que comprometia o todo se não houvesse a cura. O tempo passou sem condescendência, sem desfigurar a verdadeira tendência do que se formava. Aos poucos, o que era latejo se expressou em anomalia não pertencente ao corpo, que devia ser expelido. Arrancá-lo de uma vez não é recomendável, não pela dor agora, mas sim pela impossibilidade em expelir o todo que forma a anomalia em que o corpo tem que atuar por um tempo. Assim, a razão deixou de dar ordem e serenou o corpo para que o furúnculo desenvolvesse o seu carnegão, juntasse o seu pus e desfigurasse o coitado do braço. O furúnculo podia ter se formado no rosto, no couro cabeludo, nas nádegas, mas não quis; quis o braço e lá se hospedou e se nutriu o tanto que pôde, sem que ninguém do corpo partidário pudesse expulsá-lo. Coube ao tempo a cura. Naquela manhã, o dia começou latejante e latejou até o anoitecer e então entenderam que eram partes diferentes. O corpo deveria abandonar o furúnculo ou este deveria ser expelido e deixar o corpo. Coube ao carnegão o iniciar do sair sem resistência e sem ajuda de dedos, de mãos, de olhares, de vozes, de pensar ou querer. O furúnculo saiu, e consigo saiu, também, toda a sua natureza que o fez e o acompanha. Vazou como nunca, escorregou sem avisar ninguém, e o corpo que havia serenado só observou através a saída do carnegão com os seus que os qualificam.  O carnegão havia aglutinado forças sob a pele e rompeu a epiderme expelindo um líquido amarelado com odores próprios. Deixou para trás, depois, não a saudade, que completa com a ausência do outro, mas sim o alívio que se tornou indiferença pelo esquecimento.

 

(*) Professor

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM OnlineLogotipo JM Online

Nossos Apps

Redes Sociais

Razão Social

Rio Grande Artes Gráficas Ltda

CNPJ: 17.771.076/0001-83

Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por