Era uma garotinha de sete anos, se tanto. Linda, rostinho cor-de-rosa ressaltando dois olhos
Era uma garotinha de sete anos, se tanto. Linda, rostinho cor-de-rosa ressaltando dois olhos muito azuis e vivos. Kate morava em Filadélfia. Telefonava-me todos os domingos. Seu prazer era ler estórias para mim. Sentada ao meu lado, trazia sua coleção de livros coloridos, empilhava-os cuidadosamente e escolhia a estória do dia. Lembro-me de uma, intitulada Appleseed, o “Semente de Maçãs”. Contava a estória de um plantador de macieiras. Era a única coisa que sabia fazer. Seu ideal de vida era plantar macieiras.
Aquela imensa região era ainda desconhecida, habitada por índios, ursos, búfalos e chacais. Mas Appleseed não se preocupava. Pendurou na cintura várias sacolas de sementes e saiu campo afora plantando-as por onde passava. Começou na costa leste da região, sem saber aonde chegaria. Foi andando e plantando. Sempre plantando. Atravessou vales e “montes”. Matas e rios não o detinham. Sua sina era plantar. Várias vezes foi atacado pelos índios, os redskins, e sempre escapava. Conheceu apaches, sioux, comanches, iroqueses. (Kate, às vezes interrompia a leitura e fazia perguntas: “lá no Brasil tem índios? Comem gente? E cobras que engolem criancinhas? Lá tem sorvete? Tem televisão?”) Depois de muitas perguntas, continuava a leitura. Appleseed foi andando, andando e plantando, até chegar do outro lado, na costa oeste. Lá ficou vários anos morando com os índios. Um dia resolveu voltar. Todo o país estava coberto de macieiras. Ele não precisava mais carregar comida, carne seca e chá. As macieiras, milhões, estavam carregadas de frutas e ele veio comendo até chegar à sua casa. (E Kate concluía, muito séria: “é uma estória verdadeira”).
Pelo que concluí, Appleseed era um herói nacional. Plantando macieiras, tinha resolvido todos os problemas sociais. Pacificou os índios, que se tornaram mansos como “cordeiros”. Resolveu o problema da fome. Matou as cobras, principalmente aquelas criadas. O problema da habitação foi também liquidado. Muitas casas foram construídas ao lado das macieiras. Viraram aldeias, onde havia escola, igreja, hospital, remédios para os pobres, bancos. Todo mundo tinha emprego. O xerife prendia todos os bandidos. Ninguém era assaltado nas ruas e as portas das casas ficavam sempre abertas.
Ainda ouço a voz daquela garotinha ingênua, voz de anjo, falando de mansinho. “Appleseed was a very, very nice guy, I love him”. É isso aí, Appleseed era um cara muito bacana. Eu acredito, Kate, como acredito em todas as estórias que você leu para mim, na estória do Dumbo, do Bambi, gnomos e duendes. Só não estou acreditando mais é nos “plantadores” aqui do Brasil. Grande parte de nossos dirigentes são também grandes plantadores. Plantam mentiras. Plantam corrupção. Plantam exploração. Plantam roubos. Só não plantam maçãs.