Não consigo escrever, nestes tempos modernos, sem minhas antigas recordações. A vida longa tem esta característica: rever o passado e compará-lo ao presente. A tendência do idoso é dizer que na sua juventude tudo era melhor. Besteira, digo eu. Nada era realmente melhor, era apenas diferente. Cito um exemplo apenas: na infância e na roça a gente não tinha a facilidade dos sabões atuais de limpar roupa, casa e gente. Lá no Rio do Peixe tinha um tacho enorme, usado para fazer o sabão dos miúdos e vísceras de vaca e porco, com a necessária ajuda da velha soda cáustica e seus ácidos. Aquilo ficava em cima de uma armação de tijolo e cimento – e dentro um fogo e lenha que podiam ser imagem do inferno. Pior de tud a gente era obrigada a zelar por aquele mingau até chegar ao ponto congestionado e semissólido do sabão, mexendo com pá de madeira e aguentando as cuspidas de pedaços da explosão vulcânica. E, é claro, para o serviço iam sendo reservados os de mau procedimento na semana – talvez o jeito de perdoar os pecados caseiros. Tirado do tacho, o sabão era posto a secar em bolas grandes – até o esfriar final. Ainda em arte do capeta, tomar banho com sabão de tacho era um sacrifício final: a bola apertada espirava para parede, chão e porta, de menos para as partes humanas mais necessitadas. Bem, hoje a vida é gostosa: sabonete gostoso e delicado, comprado ali na farmácia ou armazém, um cheiro cativante quando a garota é exigente. Importante, pra sair do sabão, eram as ruas e passeios de pouco moviment ninguém tinha que correr fugindo do trânsito, seus cavalos lerdos e suas carroças pesadas. E guarda de trânsito? Caramba, lembro-me da minha praça Rui Barbosa. Ali no ponto final estava sempre um guarda de trânsito, lembro-me do Caio, bonitão e alegria das moças. De raro em raro, por alguma coincidência de dois carros, o Caio apitava duro – ele tinha apito! suspendia o braço e mostrava de quem era a vez... Naturalmente, velhos e moças bonitas tinham preferência, e desastres não aconteciam, tudo na calma de câmara lenta. Existem saudades deste passado? Bem, meu amigo leitor, a vida nas ruas e trânsito nos tempos atuais é ainda pior do que o sabão do tacho. Tem cara malabarista que vale ver atravessando a praça, suas ruas, a Leopoldino. E os carros, e as motocicletas infernais nascidas de uma parição das fábricas, coisa crescente cada dia mais... E eu pergunto aos antigos e atuais: onde está o Caio, que morreu tranquilo... e os atuais chefes e organizadores do trânsito? E os tais horários de aperto, de manhã, hora das refeições no centro, as portas dos colégios e faculdades... e quem conseguirá pôr ordem na balbúrdia das nossas ruas e passeios? Não sei, mas pergunto afinal: qual é o candidato macho que pôs o trânsito no seu programa?
(*) Médico e pecuarista