Andar de ônibus pode às vezes aguçar a criatividade
“Andar de ônibus pode às vezes aguçar a criatividade; massageia o senso de observação”, disse-me Evódio. Deveríamos nos deslocar mais de coletivo e deixar o carro para o passeio ou para situações emergenciais, em que o táxi não é capaz de nos atender. Ele entrou no ônibus naquela manhã, como se fosse segunda-feira. Sentou-se ao lado de uma desconhecida. Dizia-se consigo que estava reflexivo, mas as suas reflexões foram bruscamente interrompidas. Ele a viu entrar. Usava uma calça jeans agarrada às coxas, contornando as nádegas. A camisa era de algodão, justa ao corpo. Expunha a imaginação ao ver belos e fartos seios sob a camisa. “E os acalentaria todas as manhãs”, pensou Evódio. Seus sapatos pretos, fechados, davam-lhe mais altura, obrigando-a a jogar a cabeça para trás, assim permitindo que a visse, à sua frente, enquanto estava ali sentado, ao lado de outra pessoa, completamente diferente em estilo. De pé ao seu lado, o antebraço dela amparava a bolsa, ao escorrer de seu ombro. Junto com os cabelos sedosos, jogava-a novamente para o ombro e, num leve desequilíbrio, levando a roçá-lo com as coxas. O ônibus se deslocava e a companhia de banco ao lado se escorregava, esfregando-se nele com a coxa, com o braço. Podia senti-la, sem se mover. Enquanto que, a qualquer gesto da outra, todos os seus sentidos se mexiam em alerta. Ao entrar naquele ônibus, pôde vê-la ao longe, de pele nívea, lábios carnudos, de um olhar levemente triste, que lhe dava um ar de desamparo bucólico. “Se me pedisse uma poesia para alegrar as suas manhãs tristes, pensou Evódio, eu a escreveria, todas as manhãs e à noite”. Aos poucos, ela foi se deslocando dentro do ônibus e agora está aqui, do seu lado, de braços abertos, vulnerável. De leve perfume. O movimento do ônibus leva o seu corpo a se mexer, dando-lhe sacudidas involuntárias. Tudo se move, se mexe. Ela ali, de braços abertos, a se segurar naquelas colunas internas. Evódio pode ver as suas mãos de dedos longos e os imaginou macios. Unhas feitas de um colorido que pareciam beijadas por si. Unhas aparadas de formato leve. Ele a observava em discreto olhar, podia senti-la ao seu lado. Levantou-se cedendo o seu lugar a ela e se viu pequeno diante daquele monumento da beleza. Seu sorriso o enterrou em sua saudade. Sua voz de agradecimento acasalou-se aos seus ouvidos e adormeceu em valsa de lembranças recuperada em dias de saudades. Foi um “muito obrigada” aveludado, seguido de sorriso largo. Evódio levantou-se, deixando-a entregue ao lado daquela outra disforme, sem estilo e de acanhada aparência. O contraste ficou evidente. Duas mulheres, uma abençoada pela deusa da estética e a outra nem tanto. O princípio da igualdade não vale para a forma. Evódio passou do ponto, não deu sinal para o motorista e foi alertado pelo cobrador, acostumado com o cliente matutino. “O senhor não vai descer no seu ponto hoje?”, perguntou o cobrador, ficando sem resposta. Evódio arrastou-se até a porta lateral e olhou em direção daquela que poderia deixá-lo liberto das paixões.