Penso que todos vão concordar: a vida é uma caixa de surpresas. Nós programamos os acontecimentos, queremos definir nossos rumos e destinos de acordo com o que nos parece prazer ou necessidade
Penso que todos vão concordar: a vida é uma caixa de surpresas. Nós programamos os acontecimentos, queremos definir nossos rumos e destinos de acordo com o que nos parece prazer ou necessidade. O prazer porque é gostoso, a necessidade menos, porém obrigatória. Os anos passam, a gente sempre esperando aquela hora de pouca necessidade e maior espaço para o prazer. Vejo no meu velho e experimentado consultório como um destes idosos aparece com o rosto feliz e brilhante, esquecido até das suas dores reumáticas, anunciand eh, doutor, saiu a minha aposentadoria, agora é gozar a vida, vou pescar no Paranaíba, ver meus netos em Goiânia, jogar truco e beber cerveja no passeio da minha rua, com meus amigos ali debaixo do flamboiam, contar piada e escutar casos... sofri, né, mas valeu a pena, tô feliz feito passarinho voando pela primeira vez! Escuto o cliente e velho amigo, um pouco de inveja, ainda não sei o que é voar no esperado e livre azul do mundo... e então me consolo, como eu estão muitos pássaros cativos, e muitos que nem chegaram a sonhar... Você, meu amigo destas crônicas, vai pensar: o que o João Gilberto ’tá pensando? Calma, eu chego lá, companheiro, eu sempre chego lá. Esta crônica tem origem e razão recente, mistura sofrimento e redenção – que vou lhe contar. Eu tinha um amigo – irmão, destes raros que duram uma longa e compartilhada vida. A gente começou colega aqui no colégio Diocesano, fomos pro Rio, vestibular, entramos e cursamos juntos a medicina na Praia Vermelha, ficamos doutores, a vida parecia ter chegado na reta do sucesso, os filhos, a família, a busca daquela tranquilidade idosa que nós já estamos programando nos passeios juntos da juventude. A grande e gostosa amizade de uma vida inteira, a certeza do amigo e companheiro definitivo... sem jogar truco no caramanchão, o que ele queria mesmo era dançar bolero, boa música e conversa... Doença? Cruz credo, nem pensar... Eu jogando meu tênis senil, ele fazendo academia, esperando aniversários próximos e suas alegrias. Aí, meus amigos, entra aquela historia inesperada da vida. O médico de sucesso, o amigo insuperável, vai sair de sua casa para festinha de formatura de criança, e súbito... Cai morto! Sem aviso, sem um ai, um gemido, discreto como foi por toda a sua vida... lá se foi, sem mágoa ou dor, o doutor Ismael Ribeiro da Silva, meu grande e inesquecível amigo. Discreto, não quis dor, doença ou sofrimento que incomodasse seus amigos. Sem ele, meu mundo de amigos fica mais estreitado – e também sua família, que dele se lembrará sempre. Dos outros eu não sei nem quero saber... mas, para mim Ismael ficará como exemplo existencial.