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Pura imaginação

Ao imaginar, imagina-se em qualquer lugar. Pode-se estar sentado à varanda

Gilberto Caixeta
gilcaixeta@terra.com.br
Publicado em 28/02/2012 às 19:54Atualizado em 17/12/2022 às 08:36
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Ao imaginar, imagina-se em qualquer lugar. Pode-se estar sentado à varanda, olhando o córrego canalizado, que em noites de doçuras não há cheiro algum, a não ser de quem está ao seu lado. No atrito, o olfato cede ao tato, e tudo se torna tão assim que não há outro desejo senão o de gritar. A noite brota e os lamentos vão. O marca-passo, que salva, tornou-se monopólio de quem deveria cuidar. O cuidador de corações tornou-se capataz da morte. A angioplastia pode ser feita ali, mas não só ali. Porque só ali? Num único lugar é arriscado. O desejo escorreu pelos dedos. Qualquer peça se desgasta, imobiliza o funcionamento do equipamento, compromete quem atende e mata quem precisa do atendimento. Aquele hálito com gosto de corpo misturou-se ao dele de hortelã com vodca. Baforava em respiração ofegante, buscava uma saída sem destino, a não ser o da internação sem sucesso. O olhar perdido no córrego coberto fazia daquela cidade uma imaginação tão pura como a da vida em sociedade, onde os indivíduos têm direitos e julgamentos iguais, até mesmo quando doentes. A maca era deslocada, deslocava, corria, e o rolimã desgastado deslizava ao destino como catraca musical. Consultou pelo seu plano privado, mas, no entanto, foi internado pelo sistema único de saúde. Pelo plano privado não havia leito, então, cede-se o público a ele. O córrego corria lá fora imerso e a solidão de amar inexistente foi deixada entregue ao gosto de sorvete na boca. Ela ficou ali, dentro de casa. Pele branca coberta por lençol. Na cidade da imaginação, os doentes são tratados por laboratório desconhecido. O que vale é a prescrição médica. Ninguém, ao receitar, ganha ponto. Não há representantes de laboratórios na antessala, tudo é moral. Que insensatez é o amor. A solidão, também. Ao amá-la em rua de córrego, deixou-se entregue sem pudor. As nádegas do coração, de tão abertas, se foram. Dos sonhos ficaram as ruas sem córrego. Dos dedos escorreram lábios ressequidos pelo prazer. A maca corre em ligeireza para o quarto. O córrego continuou sem os olhares de quem o conhece, enquanto as bocas salivam amores interrompidos em desejos de hortelã. Não mais o quis. Ao se separarem, ela disse: “Haja o que houver, sempre te amarei”. Nunca mais se amaram. A maca deixou o corpo no quarto, assim dormiu. Nada sonhou. Nunca soube o que ocorreu. Ao depositar o jaleco, não mais se lembrava daqueles dias de formatura. A regra agora se tornou outra, novas macas são necessárias. O amor deixado em córrego passou a ser um detalhe. O gozo ficou nos dedos, e a dor internou-se. O monopólio continuou.

(*) Professor

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