Quando eu era criança – há tanto tempo que até já esqueci –, as mães e colégios religiosos (cursei os maristas) ensinavam uma Quaresma rígida, proibidos a carne, as brigas e esportes duros; falar nome feio... nem pensar. A gente chegava na Semana Santa num clima de sofrimento detestável. Hoje penso que até Jesus sofria em relembrar a sua (e nossa...) crise de sofrimentos. Passei aquela idade, os tempos foram mudando – aquela rigidez religiosa sacerdotal e familiar –, foram se abrandando. Agora, o que me assusta é ver a Quaresma dos novos tempos, ruas cheias de movimento e música, oferta do que comprar para presentes e festas de músicas no Pentecostes... a oração comercial é de todo o sofrimento passe de urgência, seja esquecido, o mundo é alegre e feliz, a humanidade e as suas famílias respiram alegria... ponha sua fantasia, compadre, o bumbo vai bater nas aleluias... Esta é a nova e alegre humanidade do pós-Quaresma. É, estou fora do mercado. Oitenta anos me tiraram daquela Quaresma, eu não entendo nada dos novos tempos, da nova gente, das novidades que vão passar na televisão... É, ligo a TV, recurso dos solitários. É hora do jornal, devem contar a festa e as alegrias... Assusto-me: como, o que é isto? Pais mataram e enterraram ainda semivivo o seu garoto? Saio deste canal, o seguinte... são bandidos matando comerciantes e roubando carros, a polícia já não prende, mata logo o malfeitor, nem sabe se é ele, passe rápido o canal, companheiro, chega de mortes. Ah, parece que melhorou, é gente bacana de terno e gravata, falando atrás da mesa de mogno... mas o que, meu amigo? Ele está se defendendo de protesto de alto roubo financeiro no seu gabinete, ministério e companheiros de outros países em ultramar... O sinal no badalar do sino da catedral parece grave e triste. Chama-nos para rezar. Entro na igreja, ponho meu joelho no solo, não escuto padre nem gente. Fecho os olhos, lá dentro vejo a dona Elvira, o Zé Humberto, todos os meus passados, saem lágrimas da minha Quaresma, dos anos que não voltam mais...