De quando em vez saudoso, volto a me recordar
De quando em vez saudoso, volto a me recordar de algumas criaturas que as conheci quando ainda eu era menino por volta dos meus doze anos. Se, gracejando, ainda não se corrigiram, são pessoas desonestas. Depois que aquele fazendeiro acabou com o poço da cachoeira onde nadávamos, nos foi preciso arrumar outra coisa para ter o que fazer depois das aulas. Achamos de montar um cirquinho no quintal da casa do nosso companheiro Itamar Fantuci. Rodeado por tijolos, era o picadeiro cheio de palha de arroz. Acompanhando o seu redor, outros tijolos eram os bancos para a esperada plateia. Algumas lascas de bambu espetadas no chão sustentando um arame com muitas folhas de jornais coladas, demarcavam o cirquinho. Algumas meninas faziam parte no elenco de “Famosos artistas”. O Itamar tocava uma gaita de boca. Tocava bem pra capeta. Era o melhor do espetáculo. O Tiota, um pretinho feio e gordo a bessa, equilibrava uma vassoura no queixo, na testa, até no buraco do ouvido. Eu, todo encolhido dentro de um pneu, rodava mil voltas no picadeiro. Vomitava escondido sempre e muito. O Cide e o Pinhé, os mais fortes da turma, lutavam como se fosse briga de verdade. Gislaine Spadini, linda menina com seus doze anos, não cantava tão bem quanto a sua beleza, mas era muito aplaudida. O cirquinho era frequentado até por adultos. Não teve vida longa porque, todos os dias o espetáculo era a mesma coisa. Numa tarde quando para lá fomos recolocar os tijolos e arrumar outras coisas, cadê o cirquinho? A mãe do Itamar não mais aguentando a gritaria, acabou com o nosso circo e o Itamar andou tomando bons tapas. Havendo acabado, montei sozinho no quintal lá de casa, um cineminha, aproveitando um *coradouro de roupa muito bem feito em madeira. Com aquela estrutura, me foi fácil colocar papelão em volta e em cima. Virou uma casinha comprida e escura, excelente, própria para um cineminha. Um caixote de madeira desses comuns sem o fundo, só com as laterais, era um quadro ótimo para receber a tela que era um belíssimo lenço branco que achei na gaveta. Imediatamente foi pregado com tachinhas no caixote. Recortava figuras das revistas, alguns desenhos do Zorro com a sua máscara que eu mesmo os fazia, figurinhas de jogadores de futebol que naquele tempo existiam muitas, eram molhadas e colocadas uma por vez, por trás na tela molhada. Assim, figurinhas e tela molhada, se grudavam plenamente. Com uma vela acesa, as clareava por trás. Na escuridão do cineminha, se transpareciam lindamente. A molecada (pelo amor de Deus), aprontava uma gritaria infernal. Aquela barulhada pra mim, grande proprietário, era uma sucesso. A entrada no cineminha era cobrada em palito de fósforo. Não sei o que fazia com os palitos. Pela manhã , ia contar os palitos do cineminha e ver o lucro. Grande prejuízo... Para a minha surpresa, em muitos deles, a cabeça era de cera dessas abelhinhas de parede que muito se assemelha com a cor dos fósforos. O cineminha também durou pouco porque logo a minha mãe encontrou onde estava o lenço que tanto procurava. Além de muitas chineladas, tive que desmanchar o cineminha urgente para colocar ao sol, as roupas ensaboadas para clarear. Se aquelas criaturas que usavam a cera nos palitos para enganar, ainda estão no mundo como também ainda estou e não se corrigiram, ainda saudosamente gracejando, são pessoas DESONESTAS.
*Coradouro- Onde se coloca roupa ensaboada ao sol para clarear.
(*) manoel Marta@hotmail.com