Os rituais na sociedade tendem a se distanciar cada vez mais do sofrimento e do flagelo da carne quanto mais civilidade ela acumula. A proximidade dos rituais primitivos nos tira da órbita evolutiva que estamos fadados a gravitar. Faz parte desse caldo cultural a resistência às injustiças, à perda de liberdade, às manifestações de contestação, como também às celebrações da alegria e da dor. Gostamos de festas e de rituais, mas, quando nos unimos para as manifestações, pode-se se esperar por tudo.
Confesso que fiquei incrédulo com os números divulgados pelo Ipea sobre a porcentagem dos que culpam o estilo da mulher como causa dos ataques masculinos. Agora se sabe que a pesquisa estava errada e os entendidos em comportamento social, os meios de comunicação e até uma novela, que se manifestaram em repúdio aos modos masculinos, têm o dever ético da reparação social. Uma coisa é uma sociedade machista, outra é uma sociedade de estupradores, como a pesquisa errada quis mostrar. As mulheres são merecedoras de respeito e homem algum tem o direito de encoxá-las, tocá-las, sem o seu devido consentimento.
As manifestações devem sempre ocorrer quando há o incômodo social, injustiça individual ou coletiva, ou até mesmo para que a sociedade avance. No entanto, não consigo entender certas manifestações, a exemplo do movimento feminista Bastardxs, que realizou um protesto em favor do direito e da liberdade das mulheres, sob o Viaduto do Chá, no centro de São Paulo, no domingo passado. A ativista Sara Winter ficou nua e foi suspensa por ganchos em suas costas, em um ato que se denomina “Mulher não é um pedaço de carne”. Ela, pelada com uma maçã na boca, suspensa por ganchos presos à sua carne das costas.
Uma cena dantesca. Outras nuas seguravam cartazes com frases diversas. Aquela ativista nua, toda tatuada, com as pernas vermelhas como sangue, deixava à vista os seus pudores e se dizia que não era um pedaço de carne. Mas era carne pura que estava sendo exposta, o exceto era a maçã na boca. Não sei se esse tema deveria ser conduzido assim. No entanto, sabemos o tanto que homem gosta de mulher, a ponto de não haver uma propaganda sem que elas estejam presentes. São abomináveis maus-tratos femininos, inclusive nas etnias indígenas no Brasil.
As Ticunas têm cabelos arrancados em ritual de passagem para o amadurecimento. Faz parte da cultura deles, que justificam o ritual como uma forma de fortalecimento do caráter na superação dos percalços da vida. Embriagam as jovens, flagelam-nas a noite toda, sem que elas possam dormir, e no outro dia arrancam-lhes fio por fio até que elas fiquem completamente carecas. Assim, essas jovens se tornam mulheres, prontas para a vida tribal. São rituais que levam ao sofrimento; decerto acreditam que fazendo isso estão dando o de melhor em cuidados às suas filhas. Protege-as dos fantasmas e dos males que saem das florestas. Creio que as festas de 15 anos sejam melhores, mesmo com o exibicionismo de quem pode. Temos sim que erradicar o sofrimento moral, da carne e do espírito. O outro é um outro ser igual, embora diferente, e isso não significa tolerância com os maus-tratos ou aceitação.