Financiado por empresa fabricante de ivermectina, médicos divulgaram publicidade recomendando remédios sem eficácia contra a Covid-19, o chamado "tratamento precoce"
Alguns medicamentos indicados por profissionais de saúde como tratamento precoce contra a Covid-19 (Foto/Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
A Justiça Federal no Rio Grande do Sul condenou um grupo de médicos defensores do chamado "tratamento precoce" contra a Covid-19 – que não tem nenhuma eficácia comprovada cientificamente – a pagar indenizações no valor R$ 55 milhões por danos morais coletivos e à saúde. A decisão foi divulgada pelo Ministério Público Federal (MPF) nesta quinta-feira (25).
A Justiça Federal julgou duas ações do MPF contra os responsáveis pela publicação de material publicitário intitulado “Manifesto Pela Vida”. O grupo, que se identificava como “médicos do tratamento precoce Brasil”, estimulava o consumo dos medicamentos que fariam parte de suposto “tratamento precoce”. O material era divulgado à população em geral, inclusive, com a indicação de médicos que prescreviam o tratamento do denominado “kit covid”.
O "tratamento precoce" era defendido até pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), seus ministros e parlamentares da base de apoio. Durante a pandemia, alguns dos seus remédios chegaram a ser distribuídos peo governo federal e alguns governos estaduais e municípios.
Nas sentenças, a Médicos Pela Vida (Associação Dignidade Médica de Pernambuco - ADM/PE), e as empresas Vitamedic Indústria Farmacêutica, Centro Educacional Alves Faria (Unialfa) e o Grupo José Alves (GJA Participações) foram condenados solidariamente ao pagamento de R$ 55 milhões por danos morais coletivos e à saúde, nos limites de suas responsabilidades. Em uma das ações, o montante do pagamento imposto pela Justiça foi de R$ 45 milhões e, na outra, a condenação foi de R$ 10 milhões.
No informe publicitário, a associação – com sede no Recife (PE), mas que também é integrada por médicos registrados no Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) – citava os possíveis benefícios do intitulado “tratamento precoce” para a Covid-19, citando expressamente os medicamentos.
“Tal referência, no entanto, é realizada sem qualquer indicação de possíveis efeitos adversos que podem decorrer da utilização desses medicamentos, além de possivelmente estimular a automedicação, uma vez que era indicado por associação médica”, destaca o MPF.
Segundo os procuradores que assinaram a denúncia à Justiça, a publicação contraria a legislação e ato normativo que tratam da propaganda e publicidade de medicamentos. “Resolução da Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, determina que as informações sobre medicamentos devem ser comprovadas cientificamente, o que não é o caso daqueles elencados no manifesto quando aplicados a casos de Covid-19”, observaram.
Para a Justiça Federal, ficou comprovada a cumplicidade entre a Vitamedic – fabricante do medicamento ivermectina – e a Associação Médicos Pela Vida. De acordo com o MPF, a empresa financiou a publicidade irregular, com investimento de R$ 717 mil, conforme, inclusive, admitido pelo diretor da Vitamedic durante depoimento na CPI da Covid no Senado Federal.
Cruzando dados fornecidos pela própria farmacêutica à CPI, o faturamento da Vitamedic com a venda de caixas de ivermectina em 2020 foi de cerca de R$ 469,4 milhões. O valor é 2.925% superior ao faturamento de 2019 informado pela empresa, de R$ 15,5 milhões.
Segundo o magistrado, tendo sido “configurada a interposição de pessoa ilícita, fica evidenciado que o ‘manifesto pela vida’ foi mecanismo ilícito de propaganda de laboratório fabricante de medicamento, servindo a ré do triste papel de laranja para fins escusos e violadores de valor fundamental, a proteção da saúde pública”.
Ao justificar o valor imposto nas sentenças, o magistrado assevera, ainda, que “a só e pura publicidade ilícita de medicamentos, pelos riscos do seu uso irracional, já representa abalo na saúde pública e sua essencialidade impõe a devida reparação”.
Ao analisar a participação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no caso, a Justiça Federal reconheceu a atuação equivocada do órgão durante a gestão do então presidente Jair Bolsonaro (PL), que, segundo a decisão juducial, se esquivou a todo tempo de aplicar a sua própria norma sobre publicidade de medicamentos.
A Justiça Federal reconheceu a omissão da Anvisa ao não ter atuado a associação para aplicar as penalidades previstas no caso, porém também afirma que o valor de indenização da sentença supera o que poderia ser imposto pela Agência. Assim, o juiz entendeu ter perdido objeto a parte em que o MPF pediu para que a Anvisa tomasse as providências cabíveis para exercer seu poder de polícia e punir a publicidade indevida.
Fonte: O Tempo