Os números apontam para um retrocesso na doação de órgãos em Minas Gerais, que vinha crescendo ao longo das décadas (Foto/Reprodução)
Minas Gerais tem, atualmente, 5.902 pessoas à espera de um órgão. Porém, em todo o ano passado, o Estado registrou apenas quatro transplantes de fígado/rim, três de pâncreas e 63 de coração. Ao todo, foram feitas 2.003 cirurgias em 2022. Desconsiderando os anos de 2020 e 2021 - atípicos em função da pandemia da Covid-19, que trouxe restrições para os procedimentos médicos - esse é o menor número desde 2016, quando foram feitos 1.979 transplantes. Os números apontam para um retrocesso na doação de órgãos em Minas Gerais, que vinha crescendo ao longo das décadas.
A situação preocupa profissionais da saúde, enfermos, familiares e amigos de quem está em uma longa e dolorosa fila de espera. Entre os motivos para a queda nos números estão os mitos relacionados à doação, a negação de familiares do falecido - mesmo que ele tenha dito em vida que queria ser um doador - e a falta de conhecimento, segundo especialistas.
“Temos pressa [por mais doações] porque as pessoas estão morrendo. O Brasil tem uma média de doação de órgãos que ainda é baixa, cerca de 17 a 18 doadores por milhão de habitantes, enquanto alguns países têm acima de 25 e quase 30. Dentro do país, temos diferenças importantes. Minas Gerais está na média brasileira, ou seja, não está bem. Não conseguimos decolar e não conseguimos organizar como outros Estados fizeram. Nós temos muito a melhorar ainda”, afirma o coordenador de Transplante de Fígado da Santa Casa de Belo Horizonte, Agnaldo Soares Lima.
O fato de Minas Gerais ter 853 municípios e mais de 20 milhões de habitantes é um fator que poderia fazer com que mais doações acontecessem e, consequentemente, a fila de espera diminuísse. “Eu diria que Minas Gerais, com a população que temos, é ainda mais grave. Um Estado grande como o Amazonas, por exemplo, e de baixa densidade populacional, mesmo que melhore [os índices], o número não será grande, mas, em Minas Gerais, deveríamos ter melhor efetividade de doação”, afirma Lima.
Entre as 63 pessoas que receberam um coração no ano passado está o adolescente Athos Dã, de 16 anos. O jovem, que sofria com os efeitos de uma miocardiopatia congênita restritiva hipertrófica desde criança, enfrentou vários desafios e restrições ao longo da vida. Sempre com a sensação de um cansaço extremo, ele jamais pôde aprender a andar de bicicleta, carregar a própria mochila para ir para a escola ou mesmo sair para brincar com os amiguinhos.
Porém, Athos mal sabia que tudo isso ficaria pequeno diante do maior obstáculo de todos: conseguir um novo coração, em uma fila que parece não andar. Ao longo do processo de espera, Athos ainda viu vários amigos do hospital onde ele estava internado morrerem. E tinha muito medo de ser o próximo.
“Eu tinha muito medo de morrer. Tinha medo de não realizar os meus sonhos. Tinha medo de não dar tempo de o coração chegar até mim. Eu sempre estudei muito. Tenho vontade de seguir carreira na área de informática, fiz cursos. Porém, às vezes eu pensava que isso podia não adiantar de nada. Que, de uma hora para a outra, eu poderia não estar mais aqui”, conta ele.
A dona de casa Francinete Mendes, de 51 anos, mãe de Athos, viveu dias de muita angústia junto ao filho. Para ela, o assunto não deve ser tratado de maneira romantizada, pois a espera é dolorosa.
“As pessoas sentem dores físicas e emocionais na fila de espera. Muitas não sabem se estarão vivas amanhã. É preciso que a sociedade tome essa dor de uma forma profunda. Que todos se coloquem nessa situação. Antes de passar por tudo, eu já tinha ouvido falar sobre doação de órgãos, mas não me doía, não estava na minha porta. Porém, de repente, estava no peito do meu filho”, diz ela, que hoje é doadora de órgãos, assim como os três filhos mais velhos.
Athos sobreviveu ao tempo em que ficou à espera do transplante de coração, no entanto, nem todos conseguem. “Os pacientes que estão aguardando um transplante de fígado, coração ou de pulmão não têm como substituir esses órgãos. Neste caso de transplante, se demorar muito eles podem não resistir. O número de pacientes na fila de espera é muito preocupante”, alerta Lima.
Um doador, muitas vidas salvas
A importância da doação de órgãos pode ser vista não só no sentimento dos receptores e dos seus familiares. Matematicamente, existe uma verdadeira multiplicação do bem. Conforme o diretor do MG Transplantes, Omar Cançado, um único doador pode salvar a vida de até 14 pessoas, dependendo de alguns fatores, como idade. Porém, matematicamente, existe também mais um desafio: segundo o especialista, é 10 vezes mais provável que uma pessoa precise de órgãos do que ela tenha possibilidade de doar, pois para isso é necessário morte encefálica, o que não é prevalente na população.
Além disso, diversos mitos impedem a doação, conforme o diretor do MG Transplantes. E um deles tem a ver justamente com a morte cerebral. “Muitas pessoas não entendem que quando o cérebro para de funcionar, a pessoa está morta. Se o paciente tiver morte encefálica e não houver nenhum aparelho controlado, o pulmão, o coração, param de funcionar”, explica ele. Conforme destaca Cançado, o diagnóstico desse tipo de morte é muito seguro, sendo que precisa de médicos diferentes para ser feito e ainda de exames complementares.
Quem reforça a segurança do diagnóstico de morte encefálica é o coordenador de Transplante de Fígado da Santa Casa de Belo Horizonte, Agnaldo Soares Lima. "Para se ter a confirmação da morte encefálica tem que fazer exames. Duas baterias (de exames) que estão especificadas em legislação. Temos um sistema de confirmação de morte encefálica até mais detalhado do que em outros países. Muitas pessoas não têm entendimento do que ela é e, por isso, as campanhas são necessárias", ressalta.
Outros fatores que impedem a doação de órgãos, segundo Cançado e Lima, são as crenças de que a pessoa precisa ser enterrada com o corpo intacto e, ainda, o medo de que a cirurgia de retirada deixe algum sinal visível no velório. “Isso também não acontece. O corpo é reconstituído, e o velório é feito normalmente”, afirma o médico do MG Transplantes.
"Existe uma pesquisa feita no Brasil que interrogou as famílias sobre o motivo da recusa para doação de órgãos. Percebemos que as razões alegadas, muitas vezes, são por falta de esclarecimento. Uma pequena parcela é sobre questão religiosa. Já houve manifestação de todas as religiões de serem favoráveis a doações de órgãos dentro de um sistema organizado como acontece no Sistema Nacional de Transplantes", conta Lima.
Legado do bem
Enquanto há muitos familiares que se recusam a doar os órgãos de quem partiu, há também aqueles que, apesar de toda a dor de perder uma pessoa amada, ainda têm forças para fazer o bem e pensar no próximo.
A professora universitária Sônia Pessoa, de 51 anos, doou os órgãos do único filho, o pequeno Pedro, de 9 anos, que morreu em 2016. Conforme ela relata, o menino tinha um quadro de hidrocefalia controlado e repentinamente teve um mal súbito. Ela e o pai da criança, então, decidiram doar os órgãos do filho.
“É preciso que a gente também se conscientize de que podemos fazer alguma coisa por pessoas que estão sofrendo muito. Se os nossos familiares, as pessoas que nós amamos, viveram e neste momento não é possível que estejam mais conosco, de algum modo elas podem estar aí pelo mundo”, afirma Sônia.
Para a professora universitária, Pedro deixou um legado. “Se de algum modo o Pedro veio, viveu esse período e partiu cedo, é porque ele veio deixar alguma coisa aqui para a gente. Não só para mim, mas para pessoas que ele pode ou poderia inspirar ou poderia ajudar a viver”, diz ela.
Manifestar em vida o desejo de ser doador de órgãos é essencial, visto que somente a família do falecido pode autorizar o processo. “É muito importante as pessoas conversarem e manifestarem o desejo. A família certamente vai respeitar, caso seja manifestado. E se não manifesta porque tem dúvidas, vamos esclarecer com pessoas que possam dar informações corretas”, afirma o médico Agnaldo Soares Lima.
E foi justamente em um bate papo que o empresário Maicon Resende Soares, de 26 anos, descobriu a vontade do pai, Antônio Augusto, de ser doador. “Há muito tempo houve uma propaganda que falava sobre a doação de órgãos e perguntei se ele desejava ser. Na hora respondeu que ‘lógico’, já que sempre doou sangue”, conta.
O pai de Soares faleceu após complicações decorrentes de um acidente de trânsito em Uberaba, no Triângulo Mineiro. A família respeitou o desejo do ente. “A vida dele foi muito linda e queria fazer o bem para o próximo mesmo depois de ter falecido. Consideramos que ele foi ‘tomado’ de nós, mas Deus quis assim”, comenta a aposentada Maria Geralda Resende Soares, de 56 anos, esposa de Gugu, como era conhecido.
As córneas, fígado, coração e rim de Gugu foram doados. “Fico feliz pelas outras pessoas terem recebido os órgãos. Para a gente foi o dia mais triste quando nos ligaram do hospital, mas para alguém foi o mais feliz. Alguém voltou a enxergar, o coração voltou a bater. Essa é a nossa alegria”, relata Soares que, assim como o pai, quer ser doador de órgãos. “É um gesto muito importante”.
Conscientização para todos
O caminho para termos mais doadores de órgãos passa pela conscientização. Tanto da sociedade, quanto dos profissionais da saúde. É o que afirma Agnaldo Soares Lima, coordenador do Transplante de Fígado da Santa Casa de Belo Horizonte. Segundo o especialista, a classe médica carece de mais informações sobre os procedimentos para que eles contatem o MG Transplantes.
Dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos apontam que, em 2021, houve em Minas Gerais 767 notificações de potenciais doadores, destes somente 211 se efetivaram. Levando em consideração o tamanho do Estado mineiro, quando comparado com outros, como o Paraná (1.253), por exemplo, o número é baixo, conforme analisa Lima.
“Minas Gerais notifica pouco. A situação é grave. Não basta fazer campanha com famílias, tem que ter conscientização até dos médicos. A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos já fez campanha para conscientizar a categoria, pois é ela que notifica e identifica o potencial doador. Sem isso, nem é possível abordar as famílias. Temos que trabalhar com os médicos cada vez mais”, destaca.
Lima também ressalta a necessidade de introduzir o assunto já com as crianças. “Uma vez realizei um treinamento na França e íamos até as escolas falar sobre os transplantes. É muito importante a conscientização sobre a morte encefálica pois mostramos que vai devolver a vida para uma pessoa”.
Fonte: O Tempo