Do outro lado da rua alguém grita o meu nome em tom amistoso, revelando saudade e muita carência. Pelo seu sumiço, demorei um pouco a reconhecê-lo. Aqui o chamarei de “José” óbvias.
Próximo a uma rotatória, os carros pareciam não acabar, mas depois, num salto, já estávamos abraçados e nossos corações bateram bem próximos. O meu bateu livre e o dele, não, por dever um crime à Justiça. Matou alguém.
Naquele vozerio, eu, meio constrangido, lhe perguntei sobre a vida. Ele também me fez o mesmo e fomos longe... até que esgotamos os assuntos.
Parecendo a última bola do jogo frente a frente à caçapa, sobrou-me a pergunta: - E você, como tem conduzido a sua experiência? O amigo entendeu a indagação, arredamos alguns metros e ele me contou o que lhe vai por dentro.
Ouvi relatos bem diferentes daqueles constantes do seu processo, o que depuseram as testemunhas e muito menos os fatos divulgados pela imprensa. Ali era “José”, João e nenhuma outra pessoa por perto.
Narrou-me tudo, sabendo muito bem que me enrolar seria em vão, pois do seu “a-e-i-o-u” aos dias de hoje conheço os seus passos.
Apesar de ter ceifado uma vida, ele está em liberdade e tudo indica que o seu acerto escapará dos homens, mas cairá na Instância Magna Superior. Está configurada a legítima defesa. Matou para não morrer. A marca que carrega pela transfixação de uma bala no corpo do seu desafeto satisfaz aos requisitos da lei.
Mas o que sente, “José”, lá nos recônditos de sua consciência? Remorso? Arrependimento? Vontade de apagar essa página? Ganhar o perdão de Deus? Não vi isso esboçado em sua face. Parecia-me um homem superdisposto, mas deixou escapar que jamais programou para si tamanha ocorrência na vida.
Interessante; os olhos do meu interlocutor não paravam. Ele não deu as costas e, a todo instante, dizia-se um inocente. Por quê? Para este modesto analista foi o bastante: um homem não tem o poder de inocentar o outro; absolver, sim.
Depois de um extenso e recheado diálogo, “José” partiu. Discretamente, observei o seu caminhar até vê-lo desaparecer. Ali me remontei há 50 anos e por trás daquele devedor recordei do jovem saltitante, namorador, bom de volante, instrumentista, goleador, falante etc. Tudo isso morreu num fatídico dia. Está embalsamado.
Cabisbaixo, grisalho, passos lentos, pensativo e ausência de gestos. Esse é o “José” de hoje. Atrás de si parecia deixar escrita a mensagem: “Ah... se eu soubesse... teria dado a minha vida para não viver esta que estou vivendo.”