Levanto-me cedo e preocupado: cheguei da roça à noite, cansado, não escrevi a crônica da semana. Aliás, nem pensei nela, pescar mandis tira todas as preocupações da vida
Levanto-me cedo e preocupad cheguei da roça à noite, cansado, não escrevi a crônica da semana. Aliás, nem pensei nela, pescar mandis tira todas as preocupações da vida. Vou tomar café e passar os olhos pelos jornais, atualizar-me. Nestes tempos modernos ficar dois dias sem televisão e sem jornal deixa a gente fora de sintonia, uma coisa que até me fez bem: descobri que o Flamengo só ganha quando eu o esqueço.
Bem, sento-me à mesa e passo os olhos nas manchetes de hoje. De cara, vejo na primeira página da Folha que a igreja Renascer em Cristo patrocinou mais uma marcha de seus fiéis pela avenida: um milhão de pessoas, pelo menos. Os tempos são modernos, além e acima de Jesus Cristo tem um trio elétrico com senador, bispos e bispas da nova igreja, e aquela multidão de pessoas que rezam, cantam e aplaudem; coisas que o Cristo nunca teve em sua pregaçã uma dúzia de apóstolos, umas santas mulheres, um monte de leprosos e doentes de toda espécie.
Penso nesta diferença enorme, iniciada até pelo dinheiro que permite a tecnologia e os novos métodos da evangelização. Penso mais um pouco, e vejo que desde aqueles tempos até os atuais não existe diferença, a não ser o caráter e as oportunidades da modernidade. No simples e no afinal, conclu todos os sucessos das religiões estão assentados na carência e no sofrimento da pessoa humana. O grupo existencial que tem vida boa, sucesso, dinheiro, convivência e sexologia resolvida – vivem bem, obrigado, não pensam em outra vida, igreja ou salvação de seus sofrimentos e angústias. Quando muito, olham da janela a multidão que passa na avenida, chateados pelo barulho que acorda e pela pregação que não entendem.
A multidão... esta é realmente o mesmo público de Cristo, os doentes do corpo ou da alma, buscando esperança e salvação. Tenho comigo um sentimento profissional da medicina: o grande desejo, a grande ambição do ser humano é a felicidade pessoal, acima de tudo, comunitária se for possível e tiver tempo. Nas assembleias religiosas o clima dominante é a solidariedade, a oração e o abraço ao lado, lágrimas de felicidade e cura das necessidades. Vem daí o sucesso e a necessidade religiosa, que representam a moderna terapia de grupo das mentes humanas. Médico à moda antiga, sempre converso com meu doente antes de pedir um hemograma ou ultrasom.
Descubro coisas importantes, muitas vezes além de dor de barriga, da asma ou da enxaqueca. E lamento por saber que nem nos tempos modernos a medicina ainda não dispõe de um exame laboratorial que mostre por dentro aquele sofredor que está ali, na minha frente. Lá vem de novo a lembrança do Dino, da Rosinha e suas vidas e doenças. Em festa de reis, Rosinha lamenta: Dino, olha o povo rindo e feliz ali na mesa do Zezinho, e nós dois aqui sem ninguém... E o Dino, psiquiatra da roça, dizia: - “é Rosinha, todo mundo quer é ser feliz, e daí estão todos naquela roda e seus causos. Agora, você só sabe sofrer e queixar... ninguém quer saber disto, a gente fica mesmo é sofrida e retirada...”
Não sei se vale este final sobre os tempos modernos e suas igrejas. Sei que por uma passeata, uma reunião oratória festiva, eles estão felizes. Depois pode acontecer a vida dura, que afinal será melhor suportada. Algumas igrejas cobram por este momento. Acho uma besteira: não há dinheiro que compre e garanta sua felicidade!...
(*) médico e pecuarista