Estimado leitor, vamos falar um pouco sobre música. No imaginário popular, sempre que se fala nos anos de ditadura, o que vem, imediatamente, à nossa mente são as músicas de protesto
Estimado leitor, vamos falar um pouco sobre música. No imaginário popular, sempre que se fala nos anos de ditadura, o que vem, imediatamente, à nossa mente são as músicas de protesto, sobretudo as canções de Chico Buarque de Holanda que, nos anos 70, fez um memorável show no nosso ginásio Sérgio Pacheco (mas sobre isso, eu falo noutro artigo). O objetivo dessas músicas era denunciar os descalabros cometidos pelos órgãos de repressão do governo militar.
Entretanto, houve, durante o regime militar, movimentos musicais importantes que não estavam, necessariamente, preocupados em denunciar/derrubar a ditadura instalada em abril de 1964. O Tropicalismo era um deles.
As raízes intelectuais desse movimento remontam ao Manifesto Antropofágico, escrito por Oswald de Andrade, participante da Semana de Arte moderna de 1922. Nele, o escritor propõe, entre outras coisas, devorar a cultura estrangeira, extrair-lhe o escalpo e, desse ponto, continuar produzindo arte brasileira. Uma antropofagia cultural, portanto.
O artista plástico Hélio Oiticica (esse mesmo que teve obras destruídas num incêndio dias atrás) expunha, em 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, uma instalação em forma de labirinto com plantas, areia, araras, um aparelho de TV e capas de Parangolé (um tipo de obra de arte feita para ser usada como roupa). Nome desse trabalh Tropicália. A concepção visual do Tropicalismo, uma das mais originais da MPB, teve a marca indelével da genialidade de Hélio Oiticica.
Os compositores baianos Tom Zé, Gilberto Gil e Caetano Veloso e o poeta piauiense Torquato Neto resolveram retomar a linha evolutiva da música brasileira. Afirmava esse grupo que a MPB estava estagnada desde João Gilberto. Consideravam, também, a Jovem Guarda, movimento liderado por Roberto Carlos, um retrocesso artístico na medida em que se limitava a importar sua estética de outros países.
Pois bem, esse mix cultural que envolvia Oswald de Andrade, Hélio Oiticica e os compositores baianos deu origem ao Tropicalismo (nome cunhado pelo jornalista Nelson Motta), uma das mais vibrantes forças criativas da nossa cultura.
Um belo exemplo dessa proposta musical bastante variada é a canção Geléia Geral, de Gilberto Gil e Torquato Neto, gravada em 1968, na qual se mistura o folclórico bumba-meu-boi com iê, iê, iê, com Frank Sinatra, com a escola de samba Portela. Vejamos um trechinho da sua letra: “é bumba / é iê, iê, iê / doce mulata malvada / um LP do Sinatra / três destaques da Portela / carne-seca na panela”.
O disco antológico Tropicália ou Panis Et Circenses (1968), com nítido caráter de manifesto, lançou um sincretismo de ritmos jamais ouvido, com o rock misturado à bossa nova, ao baião, ao samba e ao bolero. Caetano e Gil, a partir de então, foram elevados à condição de grandes compositores e idealizadores desse movimento.
Entrementes, o AI-5, promulgado em dezembro de 1968, obrigou vários artistas brasileiros a se exilarem em outros países, e, por isso, Caetano e Gil foram morar em Londres, voltando somente em 1972.
Mesmo tendo durado somente dois anos – entre 1967 e 1968 – o Tropicalismo deixou raízes profundas na MPB. Em tempos de profundo marasmo musical, conhecê-lo é um alento para nossos ouvidos tão maltratados.
(*) doutorando em História e professor do Colégio Cenecista Dr. José Ferreira, da Facthus e da UFTM