O critério do quantitativo de chibatadas no lombo do escravo estava a cargo do seu senhor. Sem dó – caso contrário, não haveria essa prática –, sangrava exemplarmente o lombo do faltoso. Quando o Estado interferiu limitando o número de chibatadas, a chiadeira foi geral. Entenderam que o Estado estava interferindo na propriedade privada.
Com a evolução, as chibatadas foram raleando e se apartaram do cotidiano humano, embora permanecessem outras formas de castigo corporal. A palmatória, por exemplo, esteve presente em sala de aula, assim como as varadas em nádegas femininas e masculinas até serem substituídas pelas reguadas em cabeças dos que não tinham comportamento aceitável no espaço escolar. Essa prática escolar saiu pelos muros das escolas, assim, como havia entrado pelo portão da frente.
Erradicar o legado da chibata tem sido custoso na nossa história social. No meio familiar, a presença masculina, como referencial de criação, instituiu, também, os constrangimentos que são os castigos físicos e morais. Meninos ou meninas travessos ou desobedientes tinham as pernas marcadas pela vara de marmelo, de jabuticabeira... A cinta do pai, atrás da porta, era sinônimo de respeito e de obediência, não havia espaço para dissidentes da fala imperativa do pai. Os espancamentos, os constrangimentos eram práticas aceitáveis. A violência sempre foi uma erva daninha combatida e adubada ao longo de nossos relacionamentos. Daí a mão que aperta, empurra e bate, e as vítimas, em sua maioria, são mulheres. É preciso, no entanto, interromper os desdobramentos da violência, que não são cíclicos por serem intermináveis em seu processo acumulativo de dores. Aos poucos, as famílias têm assimilado a didática do diálogo, praticado a pedagogia do entendimento e afastado as brutalidades que ceifam sentimentos. Só para ficarmos com esses exemplos de práticas da história das maldades.
O Brasil, através de lei, proibirá os tapas nas crianças, assim como proibiu os constrangimentos morais, a violência contra a mulher, criminalizou o racismo... “Um tapinha não dói”, diz a letra musical; pode até não doer. A questão não é somente a dor, mas o gesto. Porque quem bate esquece e quem apanha não, diz o ditado popular. Mas com dor ou sem dor, com esquecimento ou sem ele, o que está em jogo é o processo da violência que se inicia nos pequenos gestos, transformando em cultura moralmente aceita por uma maioria.
Sem entrar no mérito se um tapinha suave é diferente do tapinha doído, o que devemos nos precaver é da carga sentimental do tapa dado e recebido, e os seus desdobramentos na formação do rancor que se extravasa na violência. Ninguém quer conviver com o sujeito social violento. Os vários comportamentos infantis, crianças não são inocentes – são sinceras – precisam de limites, todavia têm natureza histórica diferentes. Proibir o tapa, o tapinha, é convergir moralmente ao espaço cultivador da paz, tornando-se elemento inibidor na formação de ódios. Tomara que um dia a lei entre em desuso, por entendermos que é desnecessário regulamentar aquilo que é socialmente repudiado, o tapa.
(*) professor