Viver muito... Vale a pena?

Por viver... ou ter vivido muito, venho acordando cedo demais aqui no leito e silêncio absoluto da fazenda amiga. Meu relógio de parede bate lá na sala às quatro horas – sei que não vou dormir mais. O pensamento vagueia em passagens da vida, uma preferência doentia pelas que deixam marcas e dores. Sintam comig há três dias, entro cedo no hospital, passo no pronto socorro – um hábito ou vício. A sala está com o leito ocupado, a Regina, dos casos graves, assinala silêncio, aponta a moça tão linda e jovem ali deitada - todo o instrumental de parada cardíaca aplicado. Volto mais tarde, ela está consciente e bela, trocamos algumas palavras, ela irá agora para a UTI. Depois, no segundo dia, repasso pela urgência, a Regina, emocionada, me anuncia: a menina morreu na UTI, doutor! Eu me assust apesar dos quarenta anos de conviver com a morte, ainda não a aceito... ela era tão jovem, tão bela e esperançosa... e se foi. Aqui na madrugada passam filmes das minhas tristezas na vida. Não consigo entender por que esta preferência pela lembrança ruim, eu que tenho tanta coisa boa presenteada por Deus. Em anos passados, minhas lembranças, sonhos e madrugadas eram felizes. Eu, e quantos mais como eu, era um cavaleiro da alegria – amigos me contavam. Agora, passados os anos, acontecem as surpresas ruins. Pior, não são as doenças, são as surpresas e os sofrimentos que não posso contar – o meu mundo não me acreditaria, eu (e você que me lê) temos que ser felizes, não estragar a vida e a fantasia da assistência... E pedir, talvez em difícil oração, que Deus nos poupe os sofrimentos. Mais ainda, os sofrimentos de que nos culpam... Afinal, Jesus Cristo sofreu mais, e era inocente...