Disque 100, registrou no primeiro semestre deste ano 12.533 denúncias de negligência familiar (Foto/Pixabay/Reprodução)
Vivendo no interior de São Paulo com sua família, Maria Aparecida Augusto Soares de Jesus, de 52 anos, viajou para visitar o pai, de 84 anos, que mora em Fronteira dos Vales, sua terra natal, localizada no Vale do Mucuri, em Minas Gerais. Porém, o cenário encontrado foi desolador, já que o idoso estava sem o mínimo de higiene e, até mesmo, com uma goteira sobre a cama, de onde não consegue sair sozinho, praticamente abandonado pelo irmão, um homem de 48 que era o responsável por cuidar de seu pai. O caso ilustra bem o cenário registrado pelo canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH), o Disque 100, que totalizou no primeiro semestre de 2024 um total de 12.533 denúncias de negligência familiar em Minas Gerais, um aumento de 48% em comparação ao mesmo período do ano passado, quando foram registradas 8.455 denúncias deste tipo.
Segundo Rodolfo Canônico, que é diretor executivo do Family Talks, uma ONG de advocacia em favor das famílias, a negligência familiar é caracterizada pelo abandono material dos pais ou detentores do poder familiar, no que tange ao cuidado, dever da educação, guarda e sustento de crianças, adolescentes, idosos e pessoas vulneráveis, o que inclui a alimentação, higiene, saúde, afeto e proteção.
“Quando se fala em negligência, pensamos logo que se trata de não alimentar a pessoa, não levá-la ao médico, não fornecer um ambiente seguro para lazer ou não educá-la. Estas são, de fato, algumas faces da negligência, mas elas também podem incluir a falta de afeto e de atenção. São muitos os pais ou responsáveis que não têm ideia do que os filhos fazem na escola, o que consomem na internet ou com quem passam tempo fora de casa”, detalha.
No caso de Maria Aparecida, apesar dela ter registrado um boletim de ocorrência contra o irmão mais novo, que seria alcoólatra e mora na mesma rua do idoso, a mulher segue sem conseguir levar o pai para São Paulo, uma vez que seus outros familiares foram contra a remoção do pai dela.
“Meu irmão não passava período integral com meu pai, deixava ele dormir sozinho. Ouvi relatos de amigos e vizinhos que ouvem ele gritando com meu pai, mas ninguém tem coragem de denunciar. Pessoas de minha confiança sempre iam fazer uma visita e encontravam ele sozinho, no escuro e até mesmo sem os cuidados de higiene necessários. Eu mesma quando cheguei lá encontrei meu pai com goteiras caindo em cima da cama”, lembra.
Os dados do Disque 100 do MDH apontam que 56,28% das vítimas dessas denúncias recebidas eram do sexo feminino, contra 39,57% masculinos. além disso, a faixa etária mais vitimada são as crianças, de 0 a 12 anos, com 51,9% do total. Em seguida aparecem as pessoas com mais de 60 anos, que representaram 28% do total das denúncias feitas em Minas.
Das mais de 12.500 denúncias, 11.841 foram feitas por terceiros, o que corresponde a 94,4% do total. Somente em 5% dos casos as próprias vítimas denunciaram as negligências sofridas. Segundo Rodolfo Canônico, da ONG Family Talks, a denúncia de quem está “de fora” é muito importante, até mesmo para se ter uma dimensão do problema e se pensar em soluções para ele. “Quando se trata de negligência familiar, é claro que há que se considerar a situação dos pais e não presumir que eles queiram mal de seus filhos. Mas é importante que parentes, familiares, professores e amigos próximos estejam atentos aos mais vulneráveis – daí a importância da chamada ‘rede de apoio’. A denúncia também é importante para inibir a violação de direitos, embora também seja necessário investir em prevenção”, concluiu o diretor executivo .
Ainda segundo Canônico, para saber quando denunciar, as pessoas devem observar se aqueles que cuidam de seus dependentes estão dedicando tempo suficiente a isso ou mal ficam em casa. “Isto pode ser um indicativo, afinal cuidar das pessoas demanda tempo e, sem essa dedicação, pode haver negligência. Mas reforço que é preciso tomar o cuidado de não estigmatizar uma família em dificuldades, pois muitas precisam de apoio, não de denúncias”, conclui.
Mães são as mais denunciadas
Outro dado colhido pelo Disque 100 aponta que, entre os suspeitos de negligência familiar, as mães são as principais suspeitas (42,8%). Em seguida aparecem os filhos que abandonam os pais, com 21% e, por fim, os pais, com 10,6%. Ana Florinda Dantas, juíza de direito de Alagoas e vice-presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), explica que existem diversas causas para o fato das mães serem as principais denunciadas por negligência familiar.
“O primeiro deles é a legislação brasileira e a interpretação que o judiciário dá sobre a guarda dos filhos em casos de separação, já que em torno 65 a 70% delas ficam com as mães no divórcio. E se as mães têm efetivamente a guarda na maior parte do tempo, é evidente que, se algum descuido acontece, são elas que vão ser denunciadas”, pondera.
Ainda conforme Ana Florinda, a questão econômica é outro fator que influencia este dado, já que a questão das mães solo é uma realidade “fortíssima” no Brasil. “Se 70% das mães que se divorciaram têm a guarda, muitas vezes elas sobrevivem de um trabalho onde não tem condições de deixar o filho em um lugar seguro. Então, o que acontece muitas vezes, é deixar uma criança de 12 anos tomando conta de outras de 3, 4, 6. Dá uma responsabilidade à criança que ela não pode assumir, o que é causado não pela falta de cuidado da mãe, mas pela falta de condição financeira. Então, o Estado brasileiro não tem um suporte econômico para as mães solo”, conclui a vice-presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM.
Soluções passam pelo Estado
Para solucionar o problema da negligência familiar, políticas públicas de apoio às famílias são essenciais segundo os especialistas no assunto ouvidos por O TEMPO. Para o diretor executivo da ONG Family Talks, Rodolfo Canônico, o aumento de denúncias passa pela ausência de uma rede de apoio adequada para estas famílias.
“Não tendo renda para contratar serviços de apoio, as pessoas ficam em situações muito complicadas para o exercício do cuidado. Portanto, é fundamental investir na construção de redes de apoio para famílias, como creches e escolas integrais, por exemplo. Também é importante desenvolver as capacidades da família, a partir de programas de educação parental”, defendeu.
Para a vice-presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM, Ana Florinda Dantas, um bom exemplo de política pública para reduzir estes índices já foi implantado em Portugal, onde existe um Fundo de Pensão, que visa cobrir a falta de pagamento da pensão alimentícia por parte dos pais.
“Já passou do tempo de o Brasil ter esse tipo de mecanismo, para assegurar à mãe o valor da pensão. Mesmo que o pai não pague, o Estado paga e o homem fica devendo ao Estado. É um mecanismo absolutamente eficiente e que ajuda muito. Não é a solução completa, mas ajuda muito”, concluiu.
Fonte: O Tempo