O domínio do fogo e de suas aplicações, como cozinhar alimentos e modificar paisagens, contribuiu de forma decisiva para para o desenvolvimento do Homo sapiens. Milhares de anos depois, impulsionadas pelas mudanças climáticas, as chamas fora de controle se transformaram em um dos grandes problemas da humanidade.
A queima descontrolada de combustíveis fósseis e seus efeitos sobre o clima estariam entre as principais razões para chamar o atual período de "Piroceno", a era dos grandes incêndios, com efeitos devastadores em boa parte do planeta.
Esse conceito foi cunhado por Stephen Pyne, professor emérito da Universidade Estadual do Arizona e historiador especializado em fogo. Autor de mais de 30 livros, o norte-americano publicou em 2021 uma obra inteiramente dedicada a apresentar a ideia de Piroceno e suas consequências.
"Nós estamos criando algo equivalente a uma Era do Gelo, mas com fogo", comparou. "Se pegarmos todas as características das Eras do Gelo, e houve várias delas nos últimos 2,5 milhões de anos, como mudanças no clima, mudanças nos níveis do mar, mudanças na biogeografia e extinções em massa, nós temos isso, mas agora com o fogo."
Na avaliação do pesquisador, a tentativa de suprimir totalmente o fogo contribui para agravar a situação. O uso tradicional das chamas em muitos casos foi substituído por recursos que usam energia movida a combustíveis fósseis ou por produtos químicos potencialmente poluentes.
Pyne destaca ainda que, em diversos pontos do mundo, a ausência de pequenos fogos naturais ou de queimadas controladas agravou os grandes incêndios, uma vez que há muito mais matéria orgânica para alimentar as chamas.
Por isso, ele defende a ampliação do que classifica como "fogo bom": usos controlados que reduzam os efeitos nocivos dos grandes incêndios.
Entrevista:
1. O senhor pode explicar, em linhas gerais, o conceito do Piroceno? O fogo é essencial para os humanos. Eu decidi então olhar a nossa história através da perspectiva do fogo. Parece que estamos criando o equivalente, com fogo, de uma Era do Gelo. Se você pegar todas as características das Eras do Gelo, e nós tivemos várias nos últimos 2,5 milhões de anos, mudanças no clima, mudanças nos níveis do mar, mudanças biogeográficas, extinções em massa, nós temos isso, mas agora com o fogo.
Se você pegar todas essas características e passá-las para uma perspectiva de fogo, você vai basicamente ver o mundo que nós temos hoje. A humanidade criou um pacto de ajuda mútua com o fogo há muito tempo, bem nas nossas origens. Agora, isso saiu completamente do controle. Nós pegamos o nosso melhor amigo, o fogo, que sempre foi nosso companheiro, e o transformamos no nosso pior inimigo.
2. E como isso aconteceu? Eu acho que tudo isso começa antes de as pessoas começarem a queimar combustíveis fósseis em grande escala, mas isso colocou todo o processo em uma nova escala. Acelerou tudo para além da capacidade da Terra de absorver as mudanças. A Terra é também um planeta de fogo, e nós somos criaturas únicas quanto ao uso do fogo. Durante a maior parte da nossa história, o fogo e as pessoas tinham de operar com alguns pesos e contrapesos. Se algo se desequilibrasse, o sistema colapsava e era preciso recomeçar. Quando começamos a queimar combustíveis fósseis, não há mais esses freios. Nós ganhamos a capacidade de continuar queimando dia e noite, no inverno ou no verão, na seca ou na umidade. Isso desequilibrou completamente as coisas. Nós já tínhamos alterado o clima, mas não nessa escala em que estamos agora. Atualmente, isso está fora de controle.
3. A relação das pessoas com o fogo também se alterou? No mundo desenvolvido, nós tiramos o fogo das nossas casas. Está praticamente fora das nossas cidades. Tudo é feito em máquinas ou fora da nossa visão, na forma de eletricidade ou o que seja. Nós não vemos fogo real. Nós tiramos o fogo da agricultura e estamos tentando tirá-lo do sistema inteiro. E isso causou muitos problemas nas paisagens. Boa parte do planeta tem muito do "fogo mau" e pouco "fogo bom".
4. O que é esse "fogo bom" que o senhor refere? Isso pode existir nas florestas brasileiras? É aquele velho conceito: a toxicidade de algo não depende só da substância, mas sim da dose. O fogo pode ser bom ou mau, dependendo das circunstâncias. O Brasil tem um ótimo exemplo de fogo bom com o cerrado, que não poderia existir se não queimasse regularmente. Ele precisa do fogo, ou, do contrário, seria invadido por plantas e seus efeitos biológicos especiais seriam perdidos. O fogo bom pode ser positivo quando usado na escala adequada. Ele é certamente bom para a sustentação das savanas, como o cerrado. É claro que não é a mesma coisa de entrar com uma retroescavadeira na amazônia, cortar uma parte grande da floresta e transformar isso em pasto, queimando esses locais. Quando nós passamos pela revolução verde da agricultura moderna, tentamos encontrar substitutos para o fogo. Começamos a usar petroquímicos, muitos fertilizantes, grandes quantidades de pesticidas e herbicidas. Todas as coisas que fazíamos com o fogo, agora são feitas usando esses químicos. Isso começou a se tornar um problema de poluição, entre outras coisas.
5. O senhor considera que existe uma solução para essa era dos megaincêndios que vivemos hoje? Primeiro, temos de eliminar os fogos ruins. Esses queimam comunidades, matam pessoas, produzem problemas de saúde devido à grande quantidade de fumaça. Nós já sabemos muito sobre como evitar que as cidades queimem, mas, no mundo desenvolvido, parece que decidimos que as cidades não queimam mais, a menos que estejamos em uma guerra ou tenham uma grande revolta social. É como dizer: a poliomielite e a peste bubônica já não são um problema, então podemos acabar com as medidas de saúde pública. A verdade é que agora as cidades queimando são um problema, e talvez os piores megaincêndios estão acontecendo em países desenvolvidos, que são justamente os que têm mais dinheiro e tecnologias. O segundo ponto é colocar mais fogo bom em áreas onde eles são necessários para serviços ecológicos. O fogo bom pode ajudar a prevenir o fogo mau ao diminuir e rearranjar o combustível disponível para os incêndios ruins. A terceira coisa é que nós temos de parar com a queima de combustíveis fósseis. Isso precisa acontecer o mais rápido possível. Mas, quando fizermos isso, ainda vamos precisar lidar com todos esses outros problemas com o fogo que já estavam presentes antes dos combustíveis fósseis. Os fogos vão acontecer. A escolha a ser feita é que tipo de fogos nós teremos.
RAIO-X
Stephen Pyne, 75: Historiador e professor emérito da Universidade Estadual do Arizona. Escreveu mais de 30 livros, principalmente sobre a história e gestão de incêndios em áreas selvagens e rurais, incluindo pesquisas abrangentes para os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Europa e o mundo em geral. Além do fogo, sua bibliografia inclui obras sobre a Antártida, o Grand Canyon e a missão Voyager, da Nasa.
Fonte: O Tempo.