A escrivã denuncia que os acidentes, em sua maioria, não são causados por imprudência (Foto/Jairo Chagas)
A morte de um jovem recém-casado em um acidente de carro comoveu a cidade de Frutal, no Triângulo Mineiro, levando a escrivã da Polícia Civil (PC) local, Mercya Alouan Bernardes Silva, a escrever uma carta aberta ao governador de Minas Gerais, Romeu Zema. Em sua carta, Mercya destaca que, entre suas várias funções, ela realiza uma estatística no final de cada mês, ocasião em que fica mais aparente o quão mortal são as rodovias que cercam a cidade.
Ela denuncia que os acidentes, em sua maioria, não são causados por imprudência ou irresponsabilidade dos motoristas, mas sim pelas péssimas condições das rodovias, que estão repletas de buracos, de pequenos a enormes. Segundo a escrivã, todo mês ela recebe pedidos de familiares de vítimas fatais por cópias dos boletins e de laudos periciais, vindos também de várias partes do país.
Mercya Alouan ainda chama atenção para o fato de que todo final de mês ela transita pela MG-255 para visitar seus pais no sítio, e todas as vezes encontra cerca de três veículos parados em um trecho de 16 km apenas, devido a pneus estourados em razão da quantidade absurda de buracos na estrada. A maioria dos veículos acaba trafegando pelo acostamento da rodovia, o que também é um risco, mas o fazem na intenção de desviar dos buracos, porém, nem mesmo no acostamento estão livres das péssimas condições, sem contar na falta de faixas de sinalização horizontal, que deixaram de existir há muito tempo.
Confira a carta na íntegra:
"Carta aberta ao Exmo. Sr. Governador Romeu Zema.Frutal/MG, 24 de março de 2023.
Com os meus cordiais cumprimentos, grande respeito e distinta consideração, dirijo-me a Vossa Excelência através desta carta aberta.
Nasci em Frutal/MG, há quarenta e cinco anos. Trabalho desde meus 14 anos de idade. Muitos aqui me conhecem, alguns me perguntam exatamente o que faço na Polícia Civil, poucos sabem, e muitos desconhecem a minha função dentro da polícia, por isso vou falar um pouco dela nesta carta, em especial, em um dia que estou bem triste com a perda repentina e extremamente prematura de um jovem alegre, batalhador, responsável, de conduta ilibada, o mais doce que já conheci, que teve a sua vida ceifada aos 21 anos, em uma das rodovias estaduais da região.
Sou escrivã há exatos 23 anos e mais da metade deles trabalhando diretamente com os procedimentos instaurados para apuração de acidentes de trânsito com vítima fatal, ocorridos no município, nas vias urbanas, estradas rurais, rodovias estaduais e federais.
Estamos no Triângulo Mineiro do Sul, em uma divisa de grandes e importantes Estados (Goiás, Mato Grosso do Sul e São Paulo) e como todos sabem, temos duas grandes rodovias, BR-364 e BR-153, uma das mais movimentadas do País, além das importantes rodovias estaduais, sendo uma delas que leva até a divisa com Mato Grosso do Sul.
Dentre minhas várias funções, uma delas é no final de cada mês, realizar a estatística do cartório, sendo uma das razões da existência dela, a questão de meta estipulada pela instituição. Ocasião em que fica mais aparente o quão mortal são as rodovias que nos cercam. E os acidentes, na sua grande maioria, não tem sido causados por imprudência, imperícia ou irresponsabilidade dos motoristas, mas SIM, por conta das péssimas, para não dizer horrorosas condições de todas as rodovias. Os buracos, de pequenos a enormes, tem tomado conta de todas nossas rodovias.
Todo final de semana eu trafego pela MG-255 (Estadual) para ir até o sítio dos meus pais e todas as vezes encontro cerca de três veículos parados num trecho de 16 km apenas, por conta de ter estourado pneu, em razão da quantidade absurda de buracos. A maioria dos veículos tem trafegado no acostamento, o que também é um risco, mas o fazem na intenção de desviar dos buracos, porém, nem mais no acostamento estão livres das péssimas condições, sem contar na falta de faixas de sinalização horizontal, as quais deixaram de existir há muito tempo.
Todo mês eu recebo em meu cartório, presencialmente, ou via email e ligação telefônica, os pedidos de familiares de vítimas fatais, por cópia dos boletins e dos laudos periciais. São pedidos vindos também de várias partes do País, sendo que na maioria deles eu fico sabendo um pouco mais acerca do acidente, dos envolvidos e das suas consequências.
Eram pais e seus filhos em viagens da tão planejada e economizada férias para conhecer aquele lugar dos sonhos, ou até visitar um avô/avó que ainda não pegou o seu neto no colo.
Eram casais a caminho da tão esperada e sonhada lua de mel.
Eram pais, motoristas profissionais, que atravessavam nosso país, levando insumos e cargas importantes e diversas, de uma ponta a outra do País.
Eram recém-formados retornando finalmente para casa dos pais com o diploma, motivo de grande orgulho.
Eram esposos (as) que foram até outra cidade, as vezes “logo ali”, para ministrar um curso ou palestra aos colegas, difundindo seus conhecimentos.
Eram mães que deixaram seus filhos sob os cuidados das babás ou creches para uma reunião importante na matriz da empresa.
Eram filhos de profissões diversas que precisavam utilizar a rodovia todos os dias para ter um trabalho com renda melhor e dar uma vida mais digna aos seus.
Eram jovens no início das suas vidas, pessoas de meia idade que estavam próximos de conseguir a tão merecida aposentadoria, pessoas da terceira idade que finalmente podiam usufruir da vida sem horários regrados e que teriam todo o tempo do mundo para desfrutar.
Eram crianças que ainda enxergavam tudo colorido e divertido ou que disseram papai e mamãe pela primeira vez há poucos dias e acreditavam que dentro do carro do papai estavam seguros e protegidos de todos os males.
Centenas, milhares, de vidas ceifadas, ano a ano, segundo a segundo.
Pessoas que foram jantar com os amigos, almoçaram com os colegas e chefes de trabalho, tomaram café da manhã com os filhos. Que despediram com um até logo e até breve, a gente se vê no final de semana, até daqui a pouco, mas momentos estes que nunca chegaram a acontecer.
Pessoas que pouco ou muito viveram, com projetos e sonhos diversos, mas que tiveram suas vidas findadas em uma sala fria de necropsia, as vezes de uma cidade que nem conheciam. São muitos anos que vejo tantos laudos contendo fotos da necropsia dessas importantes vidas, fotos estas que não é qualquer pessoa que consegue ver, e que inclusive eu sempre tenho o cuidado de colocar em um envelope fechado e aconselho o ente querido a não olhar, para que guarde para sempre apenas a imagem do que ela foi em vida.
E assim, recebo todo mês os pedidos de viúvas (os), irmãos, filhos e pais, inconformados e desolados. Tantas vidas ceifadas, famílias desfeitas, lares “mutilados” da noite para o dia por conta da irresponsabilidade, má gestão, má vontade, e má administração dos nossos Governantes. E ainda, Deputados, Senadores, Prefeitos, que toda eleição, estão nas nossas portas pedindo nossos votos, prometendo inúmeros projetos de melhorias, mas que nunca saem do papel e nada cumprem, bem como não intercedem a favor e junto aos órgãos responsáveis para o fazer acontecer.
Todas essas vítimas até esse fatídico dia eram pessoas que honravam com seus compromissos e pagavam todos os impostos exigidos, embutidos em todas as despesas que uma família possui para sua sobrevivência, contribuindo toda sua vida para a arrecadação, dentre elas, estadual, a qual deve realmente ser revertida para melhor qualidade de vida de todo cidadão.
Para deixar ainda pior o cenário, há cobranças de pedágios em trechos de situação vergonhosa e calamitosa. Por fim, quero aqui dizer que sei que o Senhor está há poucos anos no Governo de Minas e que infelizmente herdou um Estado abandonado, esquecido e maltratado pelo seu antecessor. Também tenho visto nas redes sociais tudo o que o Senhor tem realizado de bom e digno em prol dos mineiros, principalmente no que tange à malha viária de Minas Gerais. Verdadeiros feitos tem sido feito e concretizado pelo Senhor, diferente dos Governantes que apenas prometiam.
Por esse motivo, como cidadã que honra com seus compromissos e que ama a cidade e o Estado em que vive, principalmente a vida do próximo, venho humildemente pedir que o Senhor olhe com todo carinho para o nosso Triângulo Mineiro, para as nossas estradas, para este povo tão aguerrido, que depositou grande confiança no seu Governo, e que no prazo menor possível, o Senhor possa realizar o feito nunca antes, para que cada dia menos, possamos deixar de chorar pela perda de nossos entes tão queridos.
Respeitosamente, Mercya Alouan Bernardes Silva"