Estatística que mais chama atenção é a de furtos e roubos, que, somados, chegaram a 1.814 no ano passado
Mais de 40 mil torcedores deixavam o Mineirão, na região da Pampulha, em Belo Horizonte, após um Cruzeiro x Flamengo, em agosto de 2019, num cenário típico para entusiasmar motoristas de transporte por aplicativo, diante da fartura de clientes em potencial. Naquela noite de sábado, porém, um desses condutores, Denis José Vicente Duarte, de 35 anos, passou a encarar de outra forma os dias com jogos de futebol, após ser espancado por passageiros com socos, chutes e um ‘mata-leão’ nas proximidades do estádio. Cinco anos depois, o trauma ainda o impede de trabalhar quando a bola rola em BH, e o profissional vê a categoria num quadro desanimador: em 2024, subiu 14% em Minas o registro de ocorrências tendo como vítimas condutores cadastrados em plataformas como Uber e 99.
Levantamento da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) a pedido de O TEMPO mostra que, de janeiro a maio deste ano, motoristas de transporte por aplicativo fizeram 1.889 boletins de ocorrência por roubo, furto, ameaça, calote, estelionato, calúnia, dano ao veículo, agressão, lesão corporal, dentre outros crimes, além de acidentes. No mesmo período de 2023, foram 1.656.
Em Minas, a série histórica de dados relacionados a essa categoria profissional começou em agosto de 2021, quando os Registros de Eventos de Defesa Social (Reds) — chamados popularmente de boletins de ocorrência — passaram a sinalizar, obrigatoriamente, se o caso a ser relatado envolvia motorista de transporte por aplicativo. “A disponibilização das estatísticas e a consolidação da série histórica certamente permitirão o desenvolvimento de políticas mais direcionadas à segurança desse público”, afirma a secretaria.
De agosto de 2021 a maio deste ano, trabalhadores do setor registraram 10.419 boletins de ocorrência no Estado. “Em geral, os dados crescem. Nesse sentido, cabe ressaltar que é necessário avaliar se o quantitativo de motoristas aumentou nesse período, entre outros fatores”, destaca a Sejusp. Há cerca de 190 mil trabalhadores da categoria em território mineiro, sendo 120 mil em BH e região metropolitana, conforme o Sindicato dos Condutores de Veículos que utilizam Aplicativos de Minas Gerais (Sicovapp-MG). Uber e 99 não responderam quantos motoristas têm cadastrados e nem se esse número aumentou nos últimos anos.
Número de ocorrências é ainda maior, há subnotificação
A estatística que mais chama atenção é a de furtos e roubos, que, somados, chegaram a 1.814 no ano passado. Para o Sicovapp-MG, entretanto, há uma subnotificação de casos. “Muitas vezes, o motorista nem vai à delegacia prestar queixa, porque é obrigado a informar o nome do aplicativo para o qual trabalha, e isso pode dar uma ‘dor de cabeça’, porque ele é bloqueado da plataforma durante a investigação. O aplicativo diz que é por uma questão de segurança”, afirma a presidente da entidade, Simone Almeida.
O especialista em segurança pública Jorge Tassi concorda. “Há subnotificação. Não temos a dimensão do que acontece e não é registrado. Muitas vezes, o motorista não tem muita motivação para prestar queixa e há um descrédito em relação à investigação de pequenos crimes. O cidadão pensa: por que vou à delegacia se não houver um seguro do veículo e eu não precisar dessa informação?”, analisa.
Motorista lida com trauma após ser agredido por causa de som
Denis José Vicente Duarte ainda lida com o trauma do dia em que foi espancado na Pampulha. Em 19 de agosto de 2019, após o jogo entre celestes e rubro-negros, ele aceitou uma corrida na avenida Antônio Carlos, em frente à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), nas proximidades do Mineirão. O motivo da agressão foi o mais banal possível: a música “Salvou meu dia”, cantada por Kevinho e Gusttavo Lima. Um dos três passageiros que ele transportava criticou a canção e pediu para que Denis mudasse de estação de rádio. O trabalhador trocou de emissora, mas percebeu que, na realidade, o som vinha de outro veículo, que estava próximo.
Segundo o motorista, ele explicou a situação para o cliente, mas o homem o xingou e insistiu no pedido de forma grosseira. Ele diz que solicitou aos passageiros que descessem do carro e, neste momento, começou a ser agredido por dois deles. O trabalhador sofreu ferimentos nem diversas partes do corpo, como boca, olho, costas, perna e costela. “Analisar o que ocorreu comigo é bem doloroso. Infelizmente, fiquei com um trauma. Sofri uma tentativa de homicídio em um dia de jogo de futebol e, hoje, não trabalho mais em dias assim. Também não acompanho páginas que divulgam notícias sobre crimes contra motoristas de aplicativo, pois podem me impactar a ponto de eu ficar alguns dias sem trabalhar, com medo de que possa acontecer comigo novamente”, conta.
Impunidade é criticada por vítima
O trabalhador critica a falta de punição aos criminosos. “Tinha todas as provas para os agressores pagarem pelo que fizeram, mas não pagaram. Fiquei doente por uns quatro meses, bem debilitado, com machucados na costela e algumas sequelas”, lamenta ele, que considera necessário que as plataformas disponibilizem aos motoristas informações mais detalhadas sobre os passageiros. “Transportamos pessoas aleatórias, que não conhecemos, e as qualificações passadas pelos aplicativos são muito básicas. Tento inibir essas situações com o uso de duas câmeras no carro.”
Assalto à mão armada
Sob a mira de um revólver, Joel Marcos da Silva, de 31 anos, teve roubado o carro, o celular, a carteira e o relógio após aceitar uma corrida no bairro Eldorado, em Contagem, na região metropolitana de BH. A viagem foi chamada na conta de uma mulher, mas, quando ele chegou ao local de partida, dois homens entraram no veículo e alegaram que a solicitação do serviço havia sido feita por uma prima. No caminho, foi anunciado o assalto. “Eles começaram a agir de forma rude, apontaram uma arma para mim e me puxaram para o banco de trás”, lembra a vítima sobre o crime, em março de 2021.
O automóvel passou a ser conduzido por um dos ladrões, enquanto com Joel era ameaçado de morte. Em seguida, ele foi amarrado e abandonado na marginal da BR-381, em Betim, também na Grande BH. Sete meses depois, o veículo foi encontrado no Mato Grosso, com avarias e peças clonadas. "Nós, motoristas de aplicativo, estamos muito vulneráveis. Temos de fazer nossa própria segurança”, queixa-se.
‘Truques’ para minimizar perigos
Leonardo Henrique, de 30 anos, obedece a um protocolo próprio para tentar escapar de possíveis situações de perigo. Há cinco anos como motorista de transporte por aplicativo, ele nunca foi alvo de criminosos, mas considera que atua em uma profissão de risco. Uma das regras na rotina de trabalho dele é só aceitar corridas de passageiros com notas superiores a 4.60.
"Além disso, nas regiões que não conheço, nunca paro o carro no local exato que o usuário indica. Paro um pouco antes para observar o movimento de quem está saindo da casa. Se a pessoa já estiver na rua, me aproximo devagar e, se eu perceber uma atitude suspeita, passo direto. Sei que é um pré-julgamento, mas faço isso para me defender. Após as oito da noite, só aceito pagamento com cartão de crédito e não pego corridas pedidas em nome de outra pessoa. Depois desse horário, só trabalho nas regiões que conheço”, destaca.
PMMG dá dicas de segurança
Os motoristas podem tomar algumas precauções para evitar roubos ou para lidar com crimes que já estão em andamento. A Polícia Militar (PM) faz as orientações abaixo e afirma que “atua de forma ininterrupta no patrulhamento ostensivo para prevenir o cometimento de toda e qualquer infração penal”:
Sistema precisa ser aprimorado
O especialista em segurança pública Jorge Tassi considera necessário que as empresas de transporte por aplicativo criem um método para aprimorar a identificação dos passageiros. “Deveria haver um link para reconhecer o usuário quando ele entra no veículo, para a corrida só começar depois disso, com identificação por foto, vídeo ou impressão digital. É um sistema fácil de implementar e de baixo custo. Ele não impedirá o crime, mas permitirá um acionamento de pânico para o local da ocorrência. Há uma facilidade em usar dados de terceiros, o que ajuda os criminosos. Quem rouba abusa do anonimato. A queda do anonimato gera um constrangimento imediato e inibe a ação criminosa”, explica.
Plataformas 'não oferecem apoio'
A presidente do Sicovapp-MG, Simone Almeida, reclama que os motoristas não recebem suporte das plataformas quando são vítimas de crimes ou acidentes. “Não dão qualquer tipo de apoio. Recebemos mensagens automáticas, mas não procuram saber se o motorista está bem ou o que aconteceu”.
Por meio da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), a Uber e a 99, principais empresas do setor, afirmam que “têm a segurança de motoristas parceiros e usuários como uma prioridade em suas operações” . Elas dizem, ainda, que “investem e trabalham continuamente para buscar cada vez mais proteção por meio de ferramentas tecnológicas que atuam antes, durante e depois de cada viagem, incluindo validações no cadastro de usuários e atendimento 24 horas para casos de necessidade.” (Leia a íntegra da nota ao fim da reportagem).
Baixa remuneração
Simone também relata que, além da insegurança, a categoria precisa lidar com uma remuneração que exige carga alta de trabalho para o motorista conseguir se sustentar. Ela diz que a jornada varia conforme o perfil dos motoristas, mas que, em média, é de 54 a 60 horas semanais. Simone aponta, ainda, que a maior parte do dinheiro arrecadado com as corridas é usada para cobrir custos. Parte dos profissionais ainda tem como despesa o aluguel dos veículos. “Os valores pagos pelas plataformas estão muito baixos. Para um motorista alugar um carro básico, desembolsa R$ 2 mil por mês. Para conseguir esse dinheiro e ter lucro é difícil.”
O motorista Denis José Vicente Duarte afirma que, no passado, trabalhar no setor era mais vantajoso. “A profissão já foi melhor. Bem no início, o preço do combustível era compatível com o valor das corridas. Hoje, temos a gasolina a R$ 6,50 e a corrida mínima a R$ 5. Não compensa, de forma alguma. Continuo na profissão porque tenho carro próprio, mas, se tivesse de pagar aluguel do veículo, já teria saído.”
Seguro 59% mais caro
Em média, motoristas de transporte por aplicativo pagam 59% a mais no seguro automotivo do que quem só usa o carro para passeio. O levantamento, feito a pedido de O TEMPO, é da empresa TEx, de soluções online para o mercado de seguros, com base no TEx Analytics, e leva em conta as nove maiores regiões metropolitanas do país. Os dados ainda apontam que, enquanto os seguros do tipo “compreensivo” (os mais completos) são 80% dos contratados por condutores que fazem uso particular do automóvel, a modalidade só representa 36% no caso daqueles vinculados às plataformas como Uber e 99. Os outros 61% relativos a esse grupo são seguros que cobrem apenas furto e roubo.
Leia a íntegra do que dizem Uber e 99, por meio da Amobitec:
As empresas associadas à Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) têm a segurança de motoristas parceiros e usuários como uma prioridade em suas operações. Nesse sentido, as plataformas investem e trabalham continuamente para buscar cada vez mais proteção por meio de ferramentas tecnológicas que atuam antes, durante e depois de cada viagem, incluindo validações no cadastro de usuários e atendimento 24 horas para casos de necessidade.
As empresas possuem equipes especializadas para colaborar com autoridades e estão em diálogo constante com o poder público, de forma transparente e colaborativa, colocando-se à disposição para contribuir com iniciativas que busquem avanços na segurança para motoristas e usuários dos aplicativos.
Entre essas iniciativas, está a integração das plataformas com o sistema 190 de alguns estados, que permite ao motorista e usuário acionarem uma ferramenta de emergência que envia os dados da viagem em tempo real para as centrais de atendimento da Polícia Militar. As plataformas também colaboram com as autoridades de segurança pública nas solicitações de dados, respeitando-se a legislação relativa à privacidade.
Sobre a remuneração dos profissionais, as empresas associadas da Amobitec atuam dentro de modelos de negócio que buscam equilibrar as demandas dos motoristas, que geram renda com os aplicativos, e a situação econômica dos usuários, que procuram formas acessíveis de transporte. As plataformas informam ainda que mantêm abertos seus canais de diálogo com motoristas.
Fonte: O Tempo