Ex-presidente Jair Bolsonaro durante motociata em 2021 (Foto/Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Os gastos no cartão corporativo da Presidência da República durante a gestão Jair Bolsonaro (PL) - revelados depois de um período de sigilo com o argumento de preservar a segurança do chefe do Executivo e de parentes - apontam que foram registrados gastos expressivos durante motociatas. Ao menos três exemplos revelam isso. O Estadão pesquisou registros de notas fiscais em datas próximas aos passeios de moto. Geralmente os eventos eram associados a outros compromissos da agenda oficial, mas pairavam dúvidas sobre os custos relacionados a essas atividades.
Na véspera de uma motociata realizada no Rio de Janeiro, em maio de 2021, foram gastos R$ 33 mil em uma panificadora. Já entre os dias 9 e 10 de julho do mesmo ano, na Serra Gaúcha e em Porto Alegre - onde foi seguido de moto por apoiadores -, foram mais R$ 166 mil no cartão corporativo, em 46 despesas, concentradas em hospedagem, alimentação e combustível. Outro caso aconteceu em Ribeirão Preto (SP), em maio de 2022, onde foi feito pagamento de R$ 16 mil em uma padaria.
Segundo dados obtidos pela agência Fiquem Sabendo, a Presidência na gestão Bolsonaro gastou ao menos R$ 27,6 milhões com cartão corporativo. O ex-presidente não é o que fez mais despesas desse gênero. No seu primeiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva consumiu, em valores atualizados pela inflação, R$ 59,7 milhões entre 2003 e 2006. No segundo mandato, foram mais R$ 47,9 milhões. Entre 2011 e 2014, Dilma Rousseff gastou R$ 42,3 milhões.
Bolsonaro foi, no entanto, o único presidente a dizer publicamente que não fazia uso do cartão. A divulgação dos extratos, porém, mostra que isso não era verdade e detalha como ele usava o dinheiro da conta privativa de presidente da República. Os valores referentes a Bolsonaro ainda podem ser maiores porque nem todos os dados de despesas com cartão foram consolidados.
Nos quatro anos de governo, Bolsonaro disse ao menos 15 vezes em lives que não utilizava o cartão corporativo para despesas pessoais e dizia que eram para bancar a equipe que o acompanhava nas viagens. "O meu particular, eu posso sacar até R$ 25 mil por mês e tomar em tubaína. Nunca saquei um centavo", disse o presidente, durante uma live em nas redes sociais no dia 1.º de setembro do ano passado.
Dos 59 tipos de despesas feitas com o cartão, os gastos com hotel foram os que mais consumiram recursos. Pelo menos R$ 13,6 milhões foram desembolsados em hospedagem: muitas vezes em locais de luxo, contrariando o discurso geralmente adotado por Bolsonaro, que afirmava ser contrário a esbanjar dinheiro público quando é possível optar pela simplicidade.
Na lista de endereços que receberam quantias polpudas está o Ferraretto Hotel, em Guarujá (SP), cidade onde o agora ex-presidente costumava passar momentos de descanso. Ao longo dos quatro anos, o estabelecimento recebeu R$ 1,46 milhão. Consultas na internet mostram que as diárias variam de R$ 436 (em promoção) a R$ 940. Assim, considerando um valor médio de R$ 500, o montante seria suficiente para mais de 2,9 mil diárias.
Chama a atenção na lista de despesas a presença de um acanhado restaurante de Boa Vista, em Roraima. Há uma nota de R$ 109 mil no Sabor de Casa, estabelecimento que fornece marmitas promocionais a R$ 20 e também faz entregas.
Também em panificadoras os gastos em vários estabelecimentos passavam de R$ 10 mil. Por 20 vezes ao longo do mandato de Bolsonaro, há pagamentos para uma das filiais da padaria carioca Santa Marta. As notas fiscais variam de R$ 880 (menor valor) a R$ 55 mil (maior valor), com média de R$ 18 mil. Ao todo, o estabelecimento recebeu R$ 362 mil do cartão corporativo da Presidência. Um dos gastos foi no dia 22 de maio de 2021, na véspera de uma motociata realizada no Rio.
A predileção por doces, muitas vezes confessados por Bolsonaro, aparecem em números. Em cinco sorveterias foram feitas 62 compras, que somaram R$ 8,6 mil.
Não é ilegal comprar sorvete com o cartão corporativo. Mas esse recurso deve ser usado para ações fundamentais ao governo, principalmente em deslocamentos - e todas as sorveterias listadas no sistema são de Brasília.
Não é de hoje que ocorrem abusos no uso do cartão corporativo, um meio de pagamento criado em 2001 para facilitar a transparência dos desembolsos antes feitos por meio de apresentação de notas fiscais e dar mais agilidade aos gastos com despesas diárias.
Muito antes de a gestão de Jair Bolsonaro usar o cartão para pagar sorvete, o petista Luiz Inácio Lula da Silva colecionou, em seu primeiro mandato, casos de descontrole nos gastos. O mesmo aconteceu na gestão do tucano Fernando Henrique Cardoso.
Em 2008, o Congresso criou uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) e as investigações viraram uma troca de acusações entre a oposição ao governo e os petistas que denunciavam abusos também no governo do PSDB.
O relatório final da CPI dos Cartões Corporativos, elaborado pelo deputado petista Luiz Sérgio, levantou suspeitas sobre o uso do meio de pagamento na gestão tucana. A oposição apresentou voto em separado, destacando pontos que não foram incluídos no texto final, como o pagamento de uma conta de internet de Fabio Luís Lula da Silva, filho de Lula, no valor de R$ 112,11.
Documentos enviados ao Senado em 2008 mostraram que, na época, o cartão corporativo tinha sido usado para a compra de cargas para caneta Montblanc de ministros, aquisição de lupas, guarda-chuva, isqueiros e revistas. A utilização do meio de pagamento para esse tipo de despesa não era considerada irregular, porque há previsão de que o cartão serve para bancar gastos pessoais de autoridades, principalmente do presidente da República.
Quando Dilma Rousseff era ministra da Casa Civil, as contas do governo mostraram que o cartão foi usado para comprar um guarda-chuva para ela. Para a então primeira-dama Marisa Letícia foram compradas edições das revistas Caras, Nova e Claudia.
Ministro das Relações Institucionais no segundo mandato de Lula, Walfrido dos Mares Guia precisou trocar a carga de canetas Montblanc. De acordo com dados do cartão, foi feita uma recarga em caráter de urgência. O produto foi adquirido na Feira dos Importados, um galpão com estandes de produtos vindos do Paraguai. Na época, foram gastos R$ 210 na compra das cargas da caneta tinteiro.