Foto/Arquivo pessoal
Neuropsicóloga Liliane Além-Mar explica que o estímulo em excesso a uma parte do cérebro chamada Núcleo Accumbens, que é uma região responsável pelo prazer e desejo de querer mais, leva à dependência e consequente perda da qualidade de vida
Se antes do século 21 começar, lá em 1999, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman* já previa uma mudança impossível de passar despercebida na chamada modernidade, imagine agora, mais de vinte anos depois, quando a pós-modernidade está mais líquida do que nunca – e começando a evaporar. Apesar de fundamental nos dias de hoje, a tecnologia tem trazido diferentes desafios ao ser humano e suas relações. O consumo exagerado de bens materiais, aliado a uma ilusão mostrada nas redes sociais, pode chegar a causar dependência e transtornos de necessário tratamento, segundo explica a neuropsicóloga e doutora em Saúde Pública pela USP Liliane Além-Mar.
O cérebro humano, em sua região frontal, mais exatamente entre a testa e as orelhas, contém uma estrutura chamada Núcleo Accumbens, o “dono do prazer”. É dele que vem o desejo de querer e buscar mais, por vezes gerando uma relação de dependência, seja por comida, jogos, sexo, compras, furtos, drogas, tecnologia, entre outros.
“O ter constante, a busca material contínua, que passa a estimular muito essa região do cérebro, pode se tornar uma dependência nas pessoas, de forma que elas chegam a parar de enxergar outras importâncias no seu entorno. Quando a gente fala em bem-estar a gente fala sobre uma questão multivariável: uma variável é o bem material, mas uma outra variável é o trabalho, outra é a família, outra é a realização profissional, outra é o contato com a natureza, outra é a alimentação, e quando a pessoa foca apenas na sua necessidade material, ela tende a negligenciar outras necessidades. Com isso, ela superestimula essa região cerebral, com geração de um falso prazer. O Núcleo Accumbens passa a requisitar cada vez mais aquilo que lhe supre rápida e intensamente, gerando um falso prazer, desejando cada vez mais aquilo e ignorando as outras coisas que não gratificam tanto”, explica a neuropsicóloga.
Com isso, a pessoa adoecida pela dependência, de crianças a idosos, acaba negligenciando áreas importantes das vidas delas. “Assim que compram ou ganham algo muito desejado, e sem conquistar o bem-estar e a qualidade de vida esperados com aquilo, insatisfeitas e infelizes, as pessoas vão buscar suprir seu vazio íntimo com mais compras e presentes, seus alvos de dependência. Ou seja, as pessoas focam em ter, ter, ter e mais ter, entrando num ciclo vicioso entre dependência e insatisfação, porque o suprimento imediato do desejo não está atendendo outras esferas da vida, nem preenchendo importantes vazios íntimos. Não reconhecendo e cuidando dessa realidade, a pessoa habitualmente busca o mesmo objeto de dependência, achando, equivocadamente, que vai suprir essas necessidades. Com compras, por exemplo, a pessoa compra, não supre seu vazio, volta a senti-lo com todo seu mal-estar, precisa novamente comprar e comprar e comprar, fortalecendo esse ciclo vicioso, fenômeno muito observado em todo o mundo desde o início da pandemia”, alerta Liliane Além-Mar.
O papel da tecnologia é de protagonismo nesse ponto. Ela também se configura como um objeto de dependência quando, em muitos lares, e também em todas as idades, chega a substituir as outras fontes de energia vital, como a família, estar com a natureza, religião, música e hobbies. Por muitas vezes os jogos eletrônicos e as redes sociais acabam sendo buscados para preencher os vazios vivenciados em outras atividades, gerando uma hiperconexão que também pode tornar-se dependência. Por muitas vezes o comportamento tecnológico tende a manter a pessoa dependente completamente alheia à própria vida, desenvolvendo transtornos na convivência, distanciando-se das pessoas chegando a se divorciar, gerar constantes conflitos entre irmãos no lar, e um sem número de prejuízos à saúde mental.
*Zygmunt Bauman acreditava que as relações interpessoais ficariam cada vez mais superficiais, distanciadas, enfraquecidas, a que ele chamou de líquidas