
Zumbi liderou a Confederação dos Palmares, considerada a maior experiência de autonomia negra das Américas (Foto/Reprodução)
O Dia da Consciência Negra, celebrado nacionalmente desde 2023, resgata um dos capítulos mais simbólicos da história brasileira: a execução de Zumbi dos Palmares em 20 de novembro de 1695. Para o historiador Flávio Saldanha, professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), a data representa muito mais do que a morte de um líder quilombola. É um ponto de partida para revisitar a longa trajetória de resistência negra no país, frequentemente apagada ou distorcida ao longo dos séculos.
Zumbi liderou a Confederação dos Palmares, considerada a maior experiência de autonomia negra das Américas. Formada por diversas comunidades, abrigou entre 20 e 30 mil pessoas fugidas da escravidão e manteve-se ativa por quase 100 anos no século XVII. “Onde houve escravidão, houve resistência”, lembra o professor, destacando fugas, revoltas e a criação de quilombos como práticas permanentes naquele período.
Essa resistência também se manifesta na história regional. Em entrevista ao Pingo do J na Rádio JM, Saldanha cita o Quilombo do Campo Grande, que ocupou áreas como Ibiá, Serra do Salitre e proximidades de Coromandel, e que é reconhecido como o maior de Minas Gerais. A estrutura abrangente do quilombo, com várias comunidades articuladas entre si, reforça — segundo ele — que o Triângulo Mineiro e o Alto Paranaíba foram territórios de presença negra intensa, organizada e ativa na oposição ao sistema escravista. Para o historiador, compreender esses territórios é fundamental para desfazer a ideia de que a região teria sido apenas área de passagem ou de menor impacto da escravidão.
A reflexão sobre o 20 de novembro também toca diretamente a história de Uberaba. A cidade abriga marcas importantes da presença negra, como o antigo terreno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário — construída pela população negra e demolida décadas depois. No mesmo local está hoje a estátua de Zumbi dos Palmares, no Morro da Presidente Vargas, um dos símbolos atuais da memória da cidade.
Saldanha também recorda que a abolição de 1888 não resultou em inclusão social. Mesmo após o fim formal da escravidão, políticas de reparação e acesso a direitos não foram implementadas. Para ele, leis como a do Ventre Livre (1871) e a dos Sexagenários (1885) revelam a lentidão e a desigualdade do processo, que libertava pessoas já idosas, muitas vezes doentes e sem qualquer garantia de sobrevivência. “A pergunta essencial é: o que aconteceu no dia 14 de maio?”, provoca.
Uberaba também preserva tradições diretamente ligadas à história negra, como congadas, moçambique e afoxé, expressões culturais relacionadas, entre outros episódios, à participação de homens negros na Guerra do Paraguai. Muitos foram enviados ao conflito com promessa de alforria caso sobrevivessem. A hierarquia militar presente nos ternos das congadas nasce desse momento histórico, hoje ressignificado como elemento de identidade e continuidade cultural.
A data de hoje, afirma o historiador, tem papel central na visibilidade dessas trajetórias, sobretudo num país onde o protagonismo negro foi sistematicamente silenciado. Ele lembra que somente em 2008 a capoeira — antes criminalizada — foi reconhecida como patrimônio cultural brasileiro. E reforça a importância de políticas como as cotas raciais, que considera parte de um processo de reparação histórica, frente à ausência de ações pós-abolição.
Para Saldanha, celebrar o 20 de novembro é manter viva a memória de lideranças como Zumbi, Dandara, Tereza de Benguela, Maria Filipa e tantas outras figuras fundamentais na formação do Brasil, mas raramente presentes nos livros. “É um esforço de reconstrução da memória. A história sempre foi escrita pelo vencedor, e agora precisamos retomar as vozes que ficaram à margem”, conclui.