Em um cenário em que o debate sobre igualdade racial ganha força em todo o país, especialmente às vésperas do Dia da Consciência Negra, políticas públicas como as cotas voltam ao centro das discussões. Em entrevista ao programa Pingo do J, da Rádio JM, o professor e historiador Flávio Saldanha defendeu de forma enfática a importância das cotas raciais tanto nas universidades quanto nos concursos públicos. Para ele, a política de ação afirmativa é parte fundamental de um processo maior de reparação histórica, que busca corrigir desigualdades produzidas ao longo de séculos.
Segundo Saldanha, o Brasil assinou a abolição da escravidão em 1888 como “um mero ato jurídico”, sem qualquer projeto que garantisse a inserção dos ex-escravizados na sociedade. Essa ausência de políticas públicas estruturantes gerou um ciclo de exclusão que, nas palavras do professor, “permanece até hoje”. Por isso, ele afirma que as cotas representam uma resposta necessária a uma dívida histórica com a população negra — dívida que, segundo ele, precisa ser reparada “com juros e correção monetária”.
O historiador destaca ainda que os indicadores socioeconômicos atuais reforçam a urgência dessas políticas. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) mostram que a população negra — pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas — concentra os maiores índices de vulnerabilidade no país. Acesso limitado à educação, saúde e emprego revela a persistência do racismo estrutural e institucional. “As cotas vêm combater esse racismo e, ao mesmo tempo, promover reparação histórica”, afirma. Ele lembra que a formação do Brasil está profundamente ligada à diáspora africana e que a herança cultural, social e econômica deixada pelos povos trazidos forçadamente da África moldou o país como ele é hoje.
Saldanha aponta que os resultados já são visíveis. Desde a implantação das cotas, o número de estudantes negros e negras nas universidades cresce de forma significativa. Ainda assim, ele reforça que o avanço, embora expressivo, precisa ser ampliado. Ele lembra que a presença de estudantes negros nas universidades públicas aumentou, mas a inclusão ainda está distante de refletir a composição real da população brasileira. “Houve resultado positivo, mas é necessário mais”, conclui o professor.
Cotas mudam cenários, mas desigualdades persistem
Os dados nacionais reforçam as reflexões do historiador Flávio Saldanha ao mostrar que as cotas têm transformado o acesso ao ensino superior no Brasil. Entre 2012 e 2023, as matrículas por cota racial nas federais cresceram 266%, e, em 2022, quase 516 mil estudantes pretos e pardos já estavam matriculados — cerca de 49% do total. Em 2021, pretos, pardos e indígenas somavam 52,4% dos alunos das universidades públicas.
O número de ingressantes negros e pardos triplicou em 13 anos, e estudos apontam que o desempenho dos cotistas se iguala ao dos alunos da ampla concorrência. A revisão da Lei de Cotas, em 2023, reforçou esse avanço ao garantir que cotistas também concorram às vagas gerais e tenham prioridade no acesso a auxílios estudantis.
No serviço público, as ações afirmativas também avançaram. A nova legislação federal (Lei nº 15.142/2025) ampliou para 30% a reserva de vagas em concursos públicos federais, destinando 25% para pretos e pardos, 3% para indígenas e 2% para quilombolas. A ampliação foi aprovada após o Senado prorrogar por mais 10 anos a validade da política, reconhecendo que a desigualdade racial ainda é evidente na administração pública. O Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou a constitucionalidade das cotas e destacou que elas são essenciais para promover igualdade material, ampliar a diversidade institucional e enfrentar o racismo estrutural que historicamente excluiu a população negra de espaços de poder e decisão.
“Estamos em 2025, em que completamos 40 anos de regime democrático no Brasil. Mas enquanto houver racismo, nós não podemos falar de democracia plena neste país. Isso é importante; é capital. Acima de tudo é um ato de resistência”, finalizou Saldanha.