GOLPE DE 64

As marcas deixadas em quem perdeu seus entes na ditadura quase 60 anos depois

O aceno do Planalto aos militares e a busca de popularidade deixam na gaveta a reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, mantendo aberta uma lacuna na vida de quem ainda busca por respostas

O Tempo
Publicado em 31/03/2024 às 09:01
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Dezenas de famílias ainda buscam respostas sobre o paradeiro de familiares e amigos desaparecidos durante a ditadura no Brasil (Foto/Joédson Alves/Agência Brasil)

Dezenas de famílias ainda buscam respostas sobre o paradeiro de familiares e amigos desaparecidos durante a ditadura no Brasil (Foto/Joédson Alves/Agência Brasil)

Iara Lobo Figueiredo tem poucas lembranças da infância com os pais. Quando o mineiro de Curvelo Raimundo Gonçalves Figueiredo desapareceu, em 27 de abril de 1971, ela tinha apenas dois anos. Onze meses depois, em 29 de março de 1972, a mãe, Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo, foi atingida com um tiro na perna no episódio conhecido como Chacina de Quintino, operação policial realizada em uma casa que funcionava como aparelho da VAR-Palmares, em Quintino, no Rio de Janeiro. Levada para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), foi torturada e morta. 

Do pai, Iara guarda na memória o bigode e uma cena em que ele a colocou nas costas durante o transbordo no Rio Capibaribe, em Recife, que inundou a casa da família. Da mãe, ficaram o carinho do colo, a voz e o cheiro. “A ausência deles é uma constante presença no meu coração, e no da minha irmã também, especialmente nessa data em que ela foi presa e morta”, conta, ainda emocionada com as marcas deixadas pela história e as lembranças, mais de 50 anos depois.

“É uma semana dura pra gente, sempre, por tudo que tivemos que passar, elaborar esses dossiês para comprovar a morte deles. Ao mesmo tempo que era essencial, era também muito traumático e deixaram marcas”, completa, entre pausas, após um dia de choros.

A filha do casal morto pela ditadura é uma das dezenas de pessoas que ainda lutam para ter um desfecho oficial das fendas abertas em suas vidas pela história - e ainda sem previsão de serem fechadas. Ao completar neste domingo (31) 60 anos do golpe militar no Brasil, o Palácio do Planalto, por determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), decidiu adiar - por prazo ainda indeterminado - a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos da Ditadura Militar. 

A comissão, cuja função é investigar crimes praticados durante a ditadura, havia sido extinta durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A decisão do governo Lula tem um tom político: busca evitar atritos com os militares e grupos políticos ligados às Forças Armadas em meio ao ano de eleições municipais, diante também da queda de popularidade do presidente.  

Essa indefinição sobre a reinstalação da comissão, para Iara, é temerosa e deixa um vazio que acaba sendo ocupado por outras coisas infelizes. Ela acredita que este poderia ser um momento usado para ajustes, principalmente em se tratando de vidas perdidas pela violência. “Essa demora traz mais angústia, mais frustração e desconfiança com o governo”, lamenta. “Há uma lacuna na busca pela verdade”, reforça ela, que ainda hoje não tem notícia dos restos mortais do pai.

Iara acredita que a falta de avanços na reinstalação e modernização da comissão pode gerar um impacto negativo na preservação da memória coletiva sobre os períodos autoritários da história do Brasil. “É um impacto negativo para a repressão desses crimes. Temos que colocar essa comissão mais urgente possível para voltar a atuar com mais proatividade e assertividade, para que tudo que já foi feito não seja perdido”, conclui, em meio ao seu interesse pelo paradeiro do pai, mais do que por uma indenização. 

“Peço humildemente para que o nosso presidente [Lula] tenha a coragem de reinstalar a Comissão de Mortos e Desaparecidos e viabilize para que ela atue e traga respostas”, pede Iara.

Fonte: O Tempo

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