Estudo da FGV aponta que cada ponto percentual do mercado ilegal está associado a 239 homicídios dolosos no país
Além dos inúmeros prejuízos à saúde, cigarros falsificados fomentam a criminalidade (Foto/Pixabay/Reprodução)
Um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) aponta relação entre o mercado ilegal de cigarros, que representa três de cada 10 produtos vendidos, e o aumento da criminalidade no Brasil. Cada ponto percentual a mais de ilegalidade está associado, segundo o levantamento, a 239 homicídios dolosos por ano, além de quase 900 novas ocorrências de tráfico e quase 3 mil roubos de veículos. A pesquisa estima que o comércio clandestino movimente R$ 10,2 bilhões anuais ao crime organizado, o que representa 7% do total de faturamento dessas facções. Alta liquidez e facilidade de venda explicam o potencial do cigarro clandestino para o crime.
Em Minas Gerais, o impacto é expressivo. O Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) calcula que o mercado ilegal de cigarros movimentou R$ 466 milhões no estado em 2024, com uma perda de R$ 117 milhões apenas em Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Além disso, o estado teve 11 fábricas clandestinas fechadas entre 2012 e 2024, o segundo maior número, atrás de São Paulo, que teve 22.
O presidente do FNCP, Edson Vismona, afirma que o elo entre contrabando e crime organizado deixou de ser uma hipótese para se tornar uma realidade. Ele afirma que, em 20 anos de combate à pirataria, estabeleceu três principais impactos: ao consumidor; ao poder público, com a sonegação; e às empresas legais. “Hoje, além desses, eu acrescento mais um: à segurança pública, que claramente está sendo afetada com a alta do mercado ilegal do cigarro e outros produtos”, destaca.
Segundo ele, o cigarro é um dos produtos mais procurados por facções devido à alta carga tributária, acima de 80%, que torna o produto clandestino altamente competitivo frente ao mercado legal. “Como não se paga imposto, quando se coloca o produto no mercado, há alto lucro e baixo risco. Isso incentiva o crime”, afirmou.
Vismona também alerta para o aumento de fábricas clandestinas instaladas dentro do Brasil. “Essas fábricas usam mão de obra análoga à escravidão, não pagam tributos e estão próximas do mercado consumidor”, destaca. Segundo ele, o crescimento indica uma mudança do mercado ilegal de cigarros, antes dependente da chamada rota caipira, corredor logístico de regiões de fronteira do Brasil com o Paraguai e Bolívia. Neste sentido, Minas Gerais ganha destaque por ligar o Sudeste ao Nordeste e ao Centro-Oeste.
Domínio territorial e uso do cigarro como instrumento de influência
Para além da arrecadação ilegal, o cigarro clandestino também funciona como ponto de presença das facções em áreas urbanas. Segundo o FNCP, grupos criminosos utilizam o produto para firmar territórios e sustentar operações locais. “As milícias ocupam território vendendo exclusividade, o monopólio do crime. Só é possível comprar o produto que aquele grupo vender”, afirmou o presidente da entidade, Edson Vismona. Para ele, o alto giro e a liquidez tornam o cigarro uma ferramenta conveniente dentro dessa dinâmica.
O produto, que gera R$ 10,2 bilhões por ano ao crime organizado, segundo o estudo da FGV, integra um funcionamento em que as facções mantêm atividades de comércio ilegal para ampliar sua atuação e se aproximar de consumidores de outros ilícitos. Vismona reforça que a ocupação desses espaços estimula o avanço das organizações. “Existe uma conexão direta da venda de produtos ilegais e o aumento da criminalidade no local onde esse contrabando ocorre”, afirmou.
O especialista em segurança pública Jorge Tassi avalia que o cigarro ilegal não é, por si só, o principal estopim das disputas entre facções, mas cumpre um papel dentro da lógica de conflito permanente desses grupos. “Organizações criminosas vivem de violência e dinheiro, e tudo pode virar motivação para conflito”, afirmou. Para ele, o cigarro pode gerar tensões pontuais, mas seu uso mais comum é como base financeira e porta de entrada para outras atividades criminais.
Tassi também destaca que a tolerância ao comércio ilegal favorece a expansão das organizações criminosas. Ele explica que o cigarro não regulamentado garante margens de lucro que chegam a 80%, sustentando atividades paralelas e contribuindo para a ocupação de espaços. “É a ponta de um iceberg. Esses processos geram concorrência desleal e impedem o desenvolvimento de uma economia sadia”, avaliou.
Sobre o estudo
O pesquisador Renan Peri, da FGV, explica que o levantamento analisou dados da Pesquisa Ipec, do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), da Receita Federal e do Tesouro Nacional entre 2019 e 2024. “Montamos um painel com dados de estados onde há informações consolidadas sobre o mercado de cigarros. Identificamos uma associação entre a taxa de ilegalidade e os níveis de criminalidade, mas não afirmamos uma relação causal. O que podemos dizer é que as duas variáveis caminham juntas”, afirmou.
Peri destaca que o objetivo é dimensionar o problema e mostrar que ele vai além da economia. “Há uma percepção de que o mercado ilegal de cigarros é apenas uma questão de concorrência para as empresas. Mas é muito mais do que isso: é um problema para toda a sociedade, com efeitos diretos na segurança pública”, disse.
Fonte: O Tempo