Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou revogação dos decretos que dão acesso a armas (Foto/CARL DE SOUZA/AFP)
Tradição na política americana, o simbolismo dos cem primeiros dias começou antes da posse para Luiz Inácio Lula da Silva. Com a vitória apertada na disputa eleitoral e a necessidade urgente de provar ser possível governar com uma base mais ampla do que o PT e sua órbita na esquerda, o presidente eleito terá, diferentemente de seus antecessores, menos tempo para angariar apoio político e popular, num cenário de oposição nas ruas e de um Centrão fortalecido nas urnas.
A relevância dos cem dias remete ao governo do ex-presidente americano Franklin Delano Roosevelt, que aprovou no período 76 projetos de lei e emplacou uma série de ações regulatórias para conter a crise que assolava o país, tornando-se referência para líderes em todo o mundo de 1933 para cá.
No caso de Lula, a intenção não é apenas aprovar novas normas, mas revogar parte das existentes. Isso sem contar a imensa lista de promessas que dependem de recursos indisponíveis no Orçamento.
Recolhido após a derrota nas urnas, o presidente Jair Bolsonaro praticamente repassou a Lula a articulação política do restante de seu mandato. Em pouco mais de um mês, o governo de transição enfrentou seu primeiro teste: elaborar e aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante às famílias cadastradas no Bolsa Família seguir recebendo R$ 600 por mês e ainda mais R$ 150 por criança de até seis anos de idade já em janeiro. O texto passou, mas não sem arranhões.
Para cumprir um de seus principais compromissos, Lula teve de negociar, antes mesmo de receber a faixa, com os donos do Centrão, especialmente o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a quem havia chamado de "imperador" durante a campanha. Logo de cara, a realidade política atual se impôs, com o Legislativo muito mais poderoso que nos anos de 2003 a 2010, quando o petista exerceu seus dois primeiros mandatos.
A força atual dos partidos que compõem o Congresso ainda obrigou Lula a barganhar até os últimos dias do ano a formação de seu Ministério. Para obter a almejada governabilidade, o novo governo terá em seu rol de aliados nomes do MDB, União Brasil e PSD, siglas que ajudaram a sustentar Bolsonaro nos últimos quatro anos. Segundo a cientista política Vera Chaia, o estilo "agregador" de Lula facilita esse movimento. "Ele busca o entendimento entre forças políticas diferentes porque tem pressa em começar a governar", disse a professora da PUC.
Dentro dos cem primeiros dias, haverá pressa para anular regras estabelecidas pelo governo Bolsonaro nas mais diversas áreas, especialmente as que tratam do afrouxamento das normas para porte e posse de armas, fiscalização ambiental e imposição de sigilos para dados públicos. Além de ir ao encontro do discurso eleitoral de Lula, as medidas ajudam a assegurar o simbolismo da troca de bastão.
Um eventual "revogaço", no entanto, também precisará de apoio político, assim como a retomada já anunciada de programas sociais, como o Minha Casa Minha Vida e o Farmácia Popular. A antecipação das articulações com o Congresso, segundo a pesquisadora Carolina Botelho, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), serviu de termômetro para a próxima gestão. "O lado bom dessa história toda é que o governo entra antecipadamente na dinâmica que espera por ele em janeiro. E pode, inclusive, prever alguns passos."
Carolina ressalta que a aprovação da PEC da Transição, porém, não significa tranquilidade para Lula nos próximos quatro anos. "Essas coisas mudam de acordo com as demandas do presidente da Câmara, do chefe do Executivo, e de acordo com a conjuntura política e econômica. Retornar a um ambiente de normalidade é uma coisa positiva, mas ainda tem muita água para rolar."
Nesse cálculo, é o desempenho na economia que pode ditar o tamanho do apoio já nos primeiros meses. O cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV-SP, aponta dois desafios a serem enfrentados por Lula e sua equipe logo na largada do governo: controle da inflação e aprovação de uma reforma tributária.
"O primeiro desafio é manter a inflação num patamar baixo. Neste sentido, o fim da redução no ICMS dos combustíveis (determinado pelo presidente Jair Bolsonaro em seus últimos dias no cargo) pode representar um potencial de desgaste, visto que o preço dos combustíveis tem impacto nos preços dos alimentos, do transporte público e chega rapidamente ao orçamento dos mais pobres, sobretudo", afirmou.
O segundo desafio, na avaliação de Teixeira, é de natureza política e já foi até anunciado pelo novo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT). Trata-se da viabilização de uma reforma tributária, prometida por todos os últimos governos sem sucesso.
"Talvez a mais estrutural de todas as reformas, ela não é de fácil execução, pois exige boa coordenação com os governadores e com o Congresso. A formação do Ministério e a composição das forças indicam que Lula, por ora, conseguiu calibrar uma boa base de apoio. Todavia, se houver desgaste nesses cem primeiros dias, esse trabalho fica comprometido e, certamente, o tamanho de sua base de apoio pode refluir."
Não menos importante, a imagem a ser passada interna e externamente pelo governo Lula pode, segundo analistas, determinar o rumo do terceiro mandato. Para o professor Eduardo Grin, mestre em Ciência Política e professor da FGV, a folga orçamentária obtida na transição permitirá ao presidente focar suas atenções para recolocar o Brasil no cenário mundial. Logo em janeiro, o petista deve visitar o presidente americano Joe Biden e já tem convite para fazer o mesmo em relação ao chinês Xi Jinping.
"Se o governo arranca mal, ele já precisa fazer um freio de arrumação no primeiro ano e isso tudo cobra um preço porque significa que será necessário recompor políticas e alianças", afirmou Grin. Para ele, apesar de a data não existir como um marco institucional, ela tem um aspecto real de avaliação processual.
Não por acaso, o próprio Lula lançou parte de suas principais políticas nos cem primeiros dias de seus mandatos anteriores, como o Fome Zero, em 2003, e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007.
"Nos cem primeiros dias, o Congresso fica de olho. Se o governo está fraco, ele cobra mais. É possível avaliar objetivamente não o resultado, mas como o governo se comporta e se consegue segurar uma agenda", completa.