Durante os atos de depredação aos prédios dos Três Poderes, presidente de Portugal ofereceu abrigo aos ministros do STF e parentes, dentro e fora do Brasil
Edifício sede do Supremo Tribunal Federal (STF), após os atos de vandalismo do dia 8 de janeiro (Foto/Fellipe Sampaio/STF)
Passava das 18 horas de 8 janeiro de 2023 em Brasília quando alguns dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) começaram a receber ligações do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. Ele não só queria saber como estavam, mas onde estavam e se queriam deixar o Brasil com familiares. Oferecia ajuda.
O plano emergencial incluía transporte em aviões da TAP que tinham voos comerciais programados para decolar de grandes cidades brasileiras naquela noite em direção à Lisboa. Bastava os magistrados se dirigirem aos aeroportos onde estavam as aeronaves da empresa portuguesa para embarcarem como prioridade.
Sousa também disponibilizou abrigo aos ministros do STF e parentes, dentro e fora do Brasil. E, se não conseguissem um meio seguro e rápido para chegar a um terminal onde estivesse um avião da TAP, poderiam permanecer na Embaixada de Portugal em Brasília ou em um dos seus consulados no país. Caso embarcassem, o presidente português garantiu aos membros do tribunal exílio, além de proteção policial, pelo tempo que desejassem.
Os ministros com quem Sousa conseguiu contato agradeceram por tudo, mas recusaram os serviços portugueses. Avaliaram que, àquela altura, o pior já havia passado. No início da noite daquele dia, policiais militares começavam a evacuar os prédios públicos dos Três Poderes invadidos e depredados por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Sem a adesão das Forças Armadas, o movimento perdeu força.
No horário em que o presidente de Portugal oferecia ajuda os membros da Corte, as pessoas que haviam iniciado a marcha do Quartel-General (QG) do Exército em direção à Esplanada dos Ministérios por volta das 13 horas daquele domingo de sol forte já haviam sido detidas ou retornavam para o QG. Lá, haviam montado um acampamento desde a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a presidência.
Mas as imagens da invasão e depredação do STF, do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional ainda tomavam conta do noticiário nacional e internacional. Falava-se em uma tentativa de golpe de Estado em andamento. Por isso, líderes mundiais, como Marcelo Rebelo de Sousa, tentavam contato com autoridades brasileiras.
Sousa foi um dos primeiros a manifestar apoio público ao governo de Lula. “O governo português condena as ações de violência e desordem que hoje tiveram lugar em Brasília, reiterando o seu apoio inequívoco às autoridades brasileiras na reposição da ordem e da legalidade”, dizia nota divulgada pelo governo de Portugal ainda em 8 de janeiro de 2023.
No mesmo comunicado, o Executivo português transmitia a sua “inteira solidariedade à Presidência da República do Brasil, ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, cujos edifícios foram violados nas manifestações antidemocráticas que tiveram lugar esta tarde”.
PF descobriu planos para prender e matar Alexandre de Moraes
Quase um ano depois, Alexandre de Moraes contou, em entrevista ao jornal O Globo, que investigações da PF sobre os atos do dia 8 de janeiro de 2023 mostraram que, caso um golpe de Estado vingasse, como pediam alguns manifestantes, ele poderia ser preso e enforcado.
Este seria um dos três destinos dele, conforme investigações da instituição, agora reveladas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que também ocupa a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A entrevista foi divulgada na última quinta-feira (4).
“O primeiro previa que as Forças Especiais (do Exército) me prenderiam em um domingo e me levariam para Goiânia. No segundo, se livrariam do corpo no meio do caminho para Goiânia. Aí, não seria propriamente uma prisão, mas um homicídio. E o terceiro, de uns mais exaltados, defendia que, após o golpe, eu deveria ser preso e enforcado na Praça dos Três Poderes. Para sentir o nível de agressividade e ódio dessas pessoas, que não sabem diferenciar a pessoa física da instituição”, contou Moraes na entrevista.
Ao menos um item da sede do STF foi destruído a cada oito segundos
Cerca de 4.000 pessoas, a maioria de camisetas nas cores verde e amarela – muitas da seleção brasileira de futebol – saíram do QG do Exército e marcharam em direção à Esplanada sob escolta da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) naquele 8 de janeiro. Viaturas abriram caminho para os apoiadores de Bolsonaro, o que gerou investigações contra agentes policiais na Corregedoria da PMDF, uma vez que nem mesmo revistas foram feitas.
A multidão chegou em frente ao Congresso carregando mastros de bandeira, mochilas e até malas. Muitos portavam fogos de artifício e bombas caseiras, que foram lançados contra os prédios públicos e os poucos policiais militares e legislativos escalados para segurança naquele domingo, apesar dos alertas para manifestações por meio das redes sociais e da imprensa.
Também já estava sendo divulgada há dias a chegada maciça de pessoas ao QG naquele fim de semana, por meio de centenas de ônibus que paravam ao longo do Eixo Monumental, a avenida com seis pistas de cada lado e um largo e arborizado canteiro central que forma o imaginário corpo do “avião” do Plano Piloto de Brasília e leva à praça dos Três Poderes.
Como mostrou a Polícia Federal (PF), um dia antes, no sábado de 7 de janeiro, mensagens trocadas em aplicativos de celulares mostravam textos em que essas pessoas não só falavam em “tomada de poder” como estimulavam violência naquele fim de semana. Alguns chamavam a manifestação de “Festa da Selma”. A PF depois atestou que se tratava de uma espécie de código para o desencadeamento de um golpe de Estado.
Antes das 15 horas, a multidão que caminhou cerca de três quilômetros pelo Eixo Monumental rompeu a barreira de segurança estabelecida pela PMDF – sem a presença da tropa de choque – e ocupou a rampa e a laje de cobertura do Congresso Nacional.
Outra turma desceu em direção à praça dos Três Poderes e tomou o Palácio do Planalto e o prédio que abriga o STF, destruindo o que encontravam pela frente. Chegaram a colocar fogo em salões dos dois prédios. Jogaram granadas dentro do Supremo. Muitos fizeram questão de mostrar a destruição em suas redes sociais.
Em pouco mais de uma hora, os invasores atingiram ao menos um item da sede do STF a cada oito segundos – foram danificados ou totalmente destruídos 576 objetos, entre obras de arte, móveis e equipamentos de informática. Isso é o que mostra levantamento do próprio tribunal.
Eles ainda picharam nas janelas do Supremo o termo “perdeu, mané” e escreveram o mesmo na escultura “A Justiça”, feita em 1961 pelo artista plástico Alfredo Ceschiatti e que fica em frente à Corte. A expressão faz alusão a uma resposta dada pelo presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, após sofrer hostilidades dos militantes durante viagem a Nova York.
Os atos duraram quatro horas e contou ainda com agressões contra policiais que enfrentaram a multidão. Uma PM chegou a ser puxada do seu cavalo e quase foi linchada. Outra foi empurrada da sacada do Planalto. Vários se feriram com pedras e paus lançados. Houve quem chegou a comemorar nas redes sociais a invasão, acreditando que teriam o apoio das Forças Armadas, o que não ocorreu.
STF reagiu com afastamento de Ibaneis e outras medidas
Ao falar com Souza, os ministros já haviam passado pelo momento mais tenso. Pouco antes da ligação do presidente português, um grupo da tropa de choque chegou aos arredores do STF e no Planalto. No entanto, conforme mostrou as apurações da PF e vídeos, pessoas escaparam do flagrante com ajuda de militares do Exército.
O reforço chegou após Lula decretar intervenção na Secretaria de Segurança do DF, por volta das 18h. Nesse horário, quase 3.000 policiais militares foram enviados à Esplanada. Dezenas de pessoas foram detidas ainda dentro do Planalto e do STF. Aqueles que haviam vindo de fora retornaram ao QG. O comando do Exército mandou colocar blindados ao redor do local para impedir a entrada da PM ou de qualquer outra força. Isso impediu que quem estivesse ali fosse detido.
Mas, na manhã do dia 9, diante da pressão do Planalto, do Congresso e do STF, o Exército começou a desmontar o acampamento. Ao mesmo tempo, policiais militares levavam os participantes dos atos para ônibus.
Ainda no dia 8, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, afastou Ibaneis Rocha do cargo de governador. Menos de 24 horas depois, ele mandou prender o comandante da PM do DF, Fábio Augusto Vieira, que estava participando do policiamento em 8 de janeiro, e o secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, que estava de férias nos Estados Unidos.
Torres não atendeu nenhum telefonema de autoridades nos dias 7 e 8, e não respondeu mensagens de texto ou áudio. Por isso, foi exonerado por Ibaneis Rocha. A decisão do governador foi tomada após ele ser cobrado por ministros do STF e lideranças do Congresso; áudio recuperado pela Polícia Federal revelou que Ibaneis dormia na tarde de 8 de janeiro.
Na mesma decisão, Moraes escreveu que Torres, agiu “com descaso e conivência com qualquer planejamento que garantisse a segurança e ordem no Distrito Federal, tanto do patrimônio público, como também ignorou todos os apelos para a realização de um plano de segurança semelhante aos realizados nos últimos dois anos em 7 de setembro”.
Na ausência de Torres em terras brasileiras, a PF cumpriu mandado de busca e apreensão na casa dele. Durante a ação, foi encontrada uma minuta de decreto presidencial de estado de defesa na sede do TSE. O objetivo, de acordo com o rascunho, era reverter o resultado da eleição em que Lula havia vencido.
Torres foi preso em 14 de janeiro, ao desembarcar no Brasil, sem a família e telefone celular. Alegou ter esquecido o aparelho nos EUA. Acusado pela PF de omissão intencional na segurança do dia 8, o que teria supostamente contribuído para permitir os atos de vandalismo, sempre negou que tenha sido omisso ou facilitado algo.
Em maio, ele conseguiu o direito de cumprir em liberdade medidas alternativas à prisão, como o uso de tornozeleira eletrônica. Além disso, a Justiça determinou que ele precisa estar em casa após as 22h todos os dias e não sair do DF.
Moraes listou quatro fatos principais que indicavam falhas na atuação dos órgãos de segurança pública do DF:
Alexandre de Moraes determinou também em 8 de janeiro:
A determinação de Moraes foi finalizada com a ordem de bloqueio de canais, perfis e contas de diferentes perfis do Facebook, TikTok, Twitter e Instagram, sob pena de multa diária de R$ 100 mil pelo não cumprimento da decisão. O ministro pediu, ainda, o fornecimento de dados cadastrais dos usuários e a preservação do conteúdo publicado nas redes.
PF já fez 22 operações para apurar os atos de 8 de janeiro
Com mandados expedidos pelo STF, a PF deu início em 20 de janeiro a operação Lesa Pátria, para prender preventivamente suspeitos de participarem, financiarem ou fomentarem os atos do dia 8. Com 22 fases desde de então, este era o balanço da Lesa Pátria até a publicação deste conteúdo:
A Lesa Pátria é tratada pela PF como permanente e os suspeitos de participação e financiamento são investigados por seis crimes:
A Advocacia-Geral da União pediu à Justiça que os invasores das sedes dos Três Poderes sejam condenados a ressarcir os danos ao patrimônio público. Os prejuízos estão estimados em R$ 40 milhões até o momento Esse valor será dividido pelos condenados, por meio de multas, que já estão sendo aplicadas em julgamentos realizados pelo STF.
STF condenou até agora 30 pessoas pelo 8 de janeiro
O Supremo começou a julgar em 15 de dezembro mais 29 ações penais dos atos de 8 de janeiro. O relator, ministro Alexandre de Moraes, votou para condenar todos os réus, com penas entre 14 e 17 anos. A análise ocorre no plenário virtual, em uma sessão que ficará aberta durante o recesso do Judiciário e só será encerrada em fevereiro.
Até agora, o STF condenou outras 30 pessoas pelo 8 de janeiro, a penas que variaram entre três e 17 anos de prisão. Com isso, quando os novos julgamentos forem concluídos, o número de ações penais analisadas chegará a 59.
Todos eles fazem parte do grupo dos chamados "executores", ou seja, dos que foram presos dentro das sedes dos Três Poderes. Mesmo com o caso sendo julgado no STF, há a possibilidade de recursos. Advogados não podem questionar a culpa, mas podem requerer a revisão do tamanho da pena e do valor das indenizações, por exemplo.
Já aqueles condenados que estavam respondendo o processo em liberdade só deverão ser presos para cumprir a pena após o trânsito em julgado, ou seja, quando já não houver mais como questionar a decisão.
Ainda há 66 pessoas presas pelos ataques de 8 de janeiro
Quase um ano após os atos de 8 de janeiro, 66 pessoas seguem presas, a maioria preventivamente.
Em 18 de dezembro, Alexandre de Moraes homologou os primeiros 38 acordos de não persecução penal fechados entre réus do 8 de janeiro e a PGR. Os réus confessaram a participação nos crimes e agora precisam cumprir uma série de cláusulas, como a prestação de serviços comunitários, o pagamento de multa e a participação em um curso sobre democracia.
O acordo só foi oferecido para quem responde por crimes de médio potencial ofensivo, ou seja, para quem teve participação secundária nos protestos, como pessoas que incitaram as manifestações. A PGR fez uma análise individualizada da situação de cada réu antes de fazer as propostas. O trabalho envolve a checagem de antecedentes e de outros acordos de não persecução penal e um levantamento das condições financeiras para definir o valor da multa.
Moraes também mandou soltar 46 acusados de participar dos atos de 8 de janeiro. Em troca da liberdade provisória, os investigados deverão cumprir medidas cautelares diversas da prisão, como uso de tornozeleira eletrônica. As prisões foram revogadas menos de um mês após a morte de Cleriston Pereira da Cunha, de 45 anos, durante banho de sol no Complexo da Papuda.
Fonte: O Tempo