Com isolamento social e o medo de contaminação, pessoas têm alteração do sono e tendem a sonhar mais
O coronavírus alterou toda uma cadeia de rotinas, desde o início do dia até o desenrolar da noite. Inúmeras pessoas estão com o sono descompassado e percebem que o período de isolamento social está sendo regado com pesadelos.
Paulo Endo, psicanalista e professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) coordena uma pesquisa batizada de Inventário de Sonhos, que recolhe, em uma plataforma online, relatos de sonhos nesse período para serem analisadas posteriormente. Em 24 horas, o projeto recebeu 80 depoimentos. "Uma das coisas que estão acontecendo hoje é que as pessoas estão sonhando muito",
O inventário se inspira em outros trabalhos feitos em períodos traumáticos, como o Apartheid Project, que recolheu testemunhos relativos a experiências vividas durante o apartheid, na África do Sul, e "O Terceiro Reich dos Sonhos", livro da pesquisadora Charlotte Beradt que reúne sonhos da época do holocausto. Neste último, a autora afirma que "os sonhos são os sismógrafos do tempo presente".
"Tem coisas que estamos vivendo, e que já estão aparecendo no mundo inteiro, que é o que aparece em cenários de ditadura, totalitarismo ou guerra, quando as pessoas não podem acessar os elementos básicos, materiais, sociais e públicos para elaborar a morte do seu morto", explica o psicanalista. "Achamos que o sonho é um produto extraordinário porque ele pensa em uma outra lógica que, em vigília, nós não conseguimos pensar."
Elie Cheniaux, professor titular de psiquiatria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que os pensamentos que temos acordados se repetem durante o sono. A diferença é que, durante a vivência onírica, os sentimentos são traduzidos em uma linguagem visual. "Eles são uma realidade virtual em que a gente testa possibilidades de ação. Ele não tem só nossas memórias, mas também nossos planejamentos e vontades", afirma.
Natália Mota, psiquiatra e pesquisadora do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, afirma que estamos passando por um trauma coletivo e por uma série de lutos: de vida, de oportunidade, de perspectiva de futuro.
"Sonhar é um processo de digestão de emoções. É uma forma de ter um aprendizado de como se proteger de um determinado evento. Mas quando você tem um trauma muito significativo, muito negativo, é como se tivesse comido algo muito indigesto. Então ele fica lá, repetitivo", explica.
Ela também tem recolhido relatos de sonhos durante a pandemia e explica que um dos fenômenos de períodos como o que estamos vivendo é que os assuntos passam a ser similares. Entre os testemunhos que recebeu, um deles era o de um casal que afirmava ter tido o mesmo sonho na mesma noite.
Essa experiência com os mesmos temas, conta a psicanalista, também foi observada em uma pesquisa com relatos de crianças que viviam na faixa de Gaza.
Monica Levy Andersen, diretora de pesquisa do Instituto do Sono, explica que um dos motivos de termos a sensação de estarmos sonhando mais é que só lembramos de um sonho quando acordamos do meio para o final deles.
"Como muitas pessoas estão com o sono alterado, elas acordam mais vezes a durante a noite", conta.
Ela cita a falta de exposição à luz, falta de fatores estimulantes (como pegar um transporte ao trabalho e se relacionar com colegas pessoalmente) e o estresse de uma convivência mais intensa com os moradores de uma mesma casa como fatores que nos deixam mais despertos durante a noite.
*Com informações O Tempo