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A estrada do Anhanguera

Guido Bilharinho
Publicado em 13/07/2024 às 17:59
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Em junho de 1837, José Francisco de Azevedo, na alegada qualidade de zelador provido da Fábrica da Matriz (como então se denominava), ajuizou ação judicial na comarca de Paracatu (que abrangia Uberaba e região) contra a Câmara Municipal de Uberaba para, com base em escrito particular assinado em cruz por Tristão de Castro e sua esposa, datado de 28 de dezembro de 1812, reivindicar a área da cidade para a igreja Matriz.

Perdeu a demanda, mas a questão não foi sepultada, retornando à lide posteriormente por outro proponente, também frustrado.

Contudo, em outubro de 1909, o então fabriqueiro, monsenhor Inácio Xavier da Silva, ex-agente executivo do município, propôs ação de reivindicação contra a Câmara Municipal, pleiteando a restituição à Igreja da área urbana de Uberaba sob o mesmo pretexto invocado no longínquo ano de 1837 por José Francisco de Azevedo. Desta feita a Fábrica da Matriz conseguiu o intento em primeira instância por sentença de março de 1911. Todavia, em fevereiro de 1914, o Tribunal de Relação de Minas, para o qual a Câmara recorreu, reformando a sentença originária, julgou a ação improcedente, encerrando de vez a questão.

Dados o vulto e a importância do bem reivindicado, essa lide judicial envolveu os melhores advogados de Uberaba à época, principalmente, Felício Buarque (pela Matriz) e Antônio Cesário da Silva e Oliveira Filho (major Cesário, pela Câmara).

Tanto eles como os peritos Alexandre Barbosa e Silvério José Bernardes publicaram livros a respeito.

De autoria destes últimos é a obra que, salva do sepultamento da edição física esgotada, foi publicada integralmente no blog Bibliografia Sobre Uberaba, com as erratas devidamente corrigidas no texto e a ortografia atualizada.

Tanto pelo teor das questões arguidas quanto pelos documentos que pela primeira vez trouxe à luz – a exemplo das primeiras cartas de sesmarias locais – o citado livro é fundamental para a historiografia de Uberaba.

Contudo, conquanto a competência, capacidade, rigor e lisura de seus autores, algumas de suas informações restam controvertidas quando não equivocadas.

As mais significativas delas não podem deixar de ser indicadas, a fim de se evitar que leitores e futuros pesquisadores e historiadores as tomem como incontroversas e as repitam como isentas de dúvidas, em contínua corrente de transmissão.

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Informam os autores (à p. 07 da edição original e p. 36 do blog) que a expedição do Anhanguera 2º, que partiu de São Paulo em 30 de junho de 1722, possuiu “um corpo de 500 homens”.

O historiador Edelweiss Teixeira contesta, contudo, esse número, aduzindo em seu livro O Triângulo Mineiro nos Oitocentos (2001), à p. 23, que “enfim, organizou-se a bandeira goiana que se compunha de 152 pessoas, e não de 500, como exagerou o cronista Pedro Taques”.

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Os autores (p. 09 da edição original e p. 41 do blog) afirmam que “tendo já Goiás governo próprio, por ordem deste abriu ainda Pires de Campos nova campanha contra os caiapós pelo ano de 1755”.

Ao que consta, isso não ocorreu nesse ano, já que Pires de Campos faleceu em 1751, justamente em decorrência, segundo uns, de flechada que levou nesse combate acontecido, porém, em 1748, ainda por determinação do governo de São Paulo, visto que o governo de Goiás ainda não estava estabelecido.

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Já à p. 13 do original e p. 50 do blog, citam os autores trecho do ensaio Igreja da Matriz, de Antônio Borges Sampaio, de que “pelos idos de 1809 a 1811 esteve naquela paragem [povoado do Lajeado] o sargento-mor Antônio Eustáquio”.

Dois reparos. O ano foi de 1812, conforme vigário Silva em História Topográfica da Freguesia do Uberaba – Vulgo Farinha Podre. Antônio Eustáquio não era, então, sargento-mor, patente que obteve só em 1820. À essa época, era capitão.

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À p. 14 do original e p. 50 do blog, os autores informam que a chácara de Antônio Eustáquio “foi fundada de 1809 a 1811”.

Na realidade, o fato se deu em 1812, quando da segunda e definitiva vinda de Antônio Eustáquio.

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Já às p. 85/86 do original e p. 184/185 do blog, os autores apontam quatro equívocos de Borges Sampaio no ensaio Sertão da Farinha Podre.

1º- A data de 25/01/1803 não se refere à instalação da “medição da sesmaria concedida pelo Governo de Goiás a José Gonçalves Pimenta”, mas à concessão da referida sesmaria. Segundo eles, “a data da instalação da demarcação foi 27 de abril de 1807”. Por sua vez, à p. 124 de Uberaba: História, Fatos e Homens (1971), de Sampaio, por confusão oriunda da semelhança gráfica de 8 e 3, foi consignado equivocadamente o ano de 1808.

2º- A denominação da paragem dessa sesmaria é Santo Antônio das Lajes, e não Santo Antônio da Laje como informado por Sampaio.

3º- No referido texto de Sampaio ainda se diz que o povoado existente nessa paragem “tinha recebido a denominação de Uberaba”, sendo “elevado à categoria de distrito”.

Não foi, porém, nessa paragem, lembram os autores, que se fundou a primitiva povoação, conhecida como arraial da Capelinha, mas, sim, na paragem do Lajeado, na qual se demarcou a segunda sesmaria de José Francisco de Azevedo.

4º- Não foi a sesmaria de Santo Antônio das Lajes “a mais antiga atualmente conhecida no Sertão da Farinha Podre”, como afirma Sampaio, pois, segundo os autores, “várias sesmarias foram nesta zona concedidas cerca de 60 e 70 anos antes”.

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Por sua vez, os autores, à p. 87 do original e p. 187 do blog ponderam com proficiência e razão que se tem “atribuído a esta data de 13 de fevereiro de 1811 a elevação de Uberaba à categoria de distrito, sem contudo se apontarem jamais os termos em que foi lavrado esse ato e não há muito a imprensa local festejou-a como a data do centenário”. É de se lembrar que em 1811 Uberaba nem existia.

Como se sabe (Vigário Silva, op. cit.), nessa data de 13 de fevereiro de 1811, Antônio Eustáquio e Outros obtiveram provisão da Mesa de Consciência e Ordens para erigirem capela com orago de N. S. do Monte do Carmo. Mas onde? É o que indagam os autores, eles próprios cogitando ser no povoado de N. S. do Carmo do Prata, “cujo povoamento terá começado em seguida à exploração aí feita em 1810” por Eustáquio. Para o arraial da Capelinha não foi, porque lá já estava sendo construída a capela em honra a Santo Antônio e São Sebastião. Muito menos em Uberaba, que ainda não existia.

*

Da maior relevância para o deslinde da tormentosa questão da doação da área por Tristão de Castro e esposa constitui a atilada observação dos autores, à p. 88 do original e p. 188 desta edição, de que essa doação foi efetuada para patrimônio da capela do Lajeado, então já existente, pois terminada por volta de setembro/outubro de 1812, sendo a doação datada de 28 dezembro desse ano, visto que, à época, Uberaba não existia, só vindo a ter igreja em 1818.

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Por fim, é de se observar que, conquanto o título, o livro não enfoca a estrada como um todo, por ela própria, mas apenas em relação ao trecho que atravessa o município de Uberaba e, ainda assim, somente no que se relaciona às questões ligadas à doação de terras que Tristão de Castro e esposa teriam feito a favor da Igreja.

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