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A Ilíada - verbo e circunstância

Guido Bilharinho
Publicado em 02/05/2024 às 18:03
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Nada, no gênero, supera a Ilíada, de Homero (Século VIII a.C.), poema unitário e complexo, formado de sucessão épica e ininterrupta de acontecimentos não só em torno de combates, mas, ainda e não em menor importância, de comportamentos e atitudes das principais personagens. Não só de seres humanos, mas também de deuses do Olimpo, desde Zeus, o ser supremo dessa mitopoética universal, perene e eterna, a até deuses secundários e semideuses.

São espantosos o vigor da linguagem versificada e o cadenciamento e nível implementados e desenvolvidos da primeira à última linha, só semelhantes por nós encontrados em Euclides da Cunha (Os Sertões) e nos escritos e discursos parlamentares de Leopoldino de Oliveira, prefeito e deputado federal por Uberaba na década de 1920.

Incomensurável em suas medidas, a Ilíada é, também, não obstante embebida em oralizadas lendas, mitos, tradições e elucubrações poéticas anteriores, obra literária pessoal da mais alta criação e inventividade, na qual Homero, sobre portentoso material, expõe e demonstra seu poder conceptivo e perceptivo, produzindo episódios, forjando atos individuais e coletivos, direcionando e redirecionando fatos e ocorrências, insuflando extrema pujança tanto no enunciado verbal como na urdidura temática, um e outro tão umbilicalmente associados e corporificados que é impraticável e mesmo impossível sua ocorrência autônoma.

A Ilíada compõe-se de verbo e circunstância, grandioso e insuperável um, quanto eterna e memorável outra enquanto possível a existência humana na face da terra.

Sobre a forja de mitos e acontecimentos reais verificáveis, envoltos na mesma roupagem elaborativa, o que se inicia com a revolta e a cólera de Aquiles decorrentes da desconformidade da atitude de Agamenon, percorrendo toda uma linha cronológica e consequencial de sucessão e desenvolvimento, Homero engendra a própria conturbada trajetória da espécie humana, destituída de poderes ilimitados e, por isso, submetida aos caprichos e mesmo idiossincrasias dos deuses olímpicos, representação e símbolos das emoções, sentimentos e concepções humanas.

Contudo, conquanto essa fragilidade, espécie humana suscetível de capacidade e possibilidades, mercê de cérebro externalizado na linguagem, sem a qual impossível sua manifestação, e na postura ereta servida pelas potentes clavas das mãos.

A Ilíada é, pois, síntese e perspectivas de ser humano e suas habilidades, não só de profundo conhecimento de sua fisiologia quanto de antevisão ou previsão (e até descrição) de robôs, ao explicitar que “ladeado por duas estátuas/de ouro, semelhas a moças dotadas de vida, pois ambas/entendimento possuíam, alento vital e linguagem,/ sobre entenderem das obras que aos deuses eternos são gratas” (Ilíada. 4ª edição. São Paulo/SP, edições Melhoramentos, 1962, canto XVIII, versos 417/420, p. 378, tradução de Carlos Alberto Nunes).

*

A Ilíada está na base de grande parte da tragédia clássica grega, como reconhece Platão ao se referir à “tragédia e o seu corifeu, Homero” (A República. São Paulo/SP, editora Martin Claret, 2007, Livro X, p. 297, tradução de Pietro Nassetti) e que “Homero é o maior dos poetas e o primeiro dos tragediógrafos” (op. cit., Livro X, p. 306).

Já Aristóteles proclama que “se bem que estes dois poemas [a Ilíada e a Odisseia] sejam de composição quase perfeita” (Poética, in Aristóteles (II), coleção “Os Pensadores”. São Paulo/SP, Abril Cultural, 1979, Cap. XXVI, p. 269, tradução de Eudoro de Sousa), porém supondo equivocadamente que “a tragédia supera a epopeia” (op. cit., cap. XXVI, p. 268), já que gêneros distintos, autônomos e independentes, portadores de características particulares, insuscetíveis, pois, de comparação.

“Lede Homero, queimai o resto”, proclamou, entusiasmado, Hugo de Carvalho Ramos, autor de Tropas e Boiadas (1917), apud Hugo de Carvalho Ramos Magalhães, O Gênio Goiano, Uma Biografia de Hugo de Carvalho Ramos, inédita, cap. VIII.

Por sua vez, existem certas edições da Ilíada que apresentam falsas capas mostrando o episódio do Cavalo de Troia, o popular “presente de grego”, que não ocorre na obra, referente apenas ao nono ano da guerra, enquanto esse ardil grego foi maquinado e efetivado ao final do décimo e último ano dos combates, terminados justamente em decorrência dele ter propiciado a invasão da inexpugnável cidade.

 Guido Bilharinho

Advogado em Uberaba e editor das revistas culturais eletrônicas Primax (Arte e Cultura), Nexos (Estudos Regionais) e Silfo (Autores Uberabenses)

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