Em A Orgia da Morte (The Mask of the Red Death, EE.UU., 1964), Roger Corman (1926-maio/2024) inspira-se no conto “A Máscara da Morte Rubra” (The Mask of the Red Death), de Edgar Allan Poe, inicialmente publicado em 1842.
Do texto literário o cineasta retira o essencial da trama, seu núcleo central, e em torno dele tece amplo painel de acontecimentos, aduzindo fatos e concepções a ele totalmente alheios. Nesse sentido, todas as cenas externas ao castelo, bem como a maioria das decorridas em seu interior, foram acrescidas no filme.
Na realidade, Corman foi influenciado pela filmografia estadunidense que focaliza a Idade Média, extraindo dessa ficção os acontecimentos narrados no filme, excetuadas a ocorrência da peste, a suntuosidade do castelo, a reclusão do príncipe e seus convidados para se protegerem, o baile de máscaras e o incidente com o estranho mascarado surgido em meio ao bródio.
Afora isso, tudo o mais advém da influência direta da citada filmografia.
É bem verdade que muitos dos fatos são sugeridos por Poe, a exemplo de que “providenciara o príncipe para que não faltassem diversões. Havia jograis, improvisadores, bailarinos, músicos”.
Contudo, o culto de adoração a Belial, o demônio, e as concepções deístas do príncipe escapam completamente a Poe e representam criação fílmica, inclusive alicerçadas em complexa formulação.
Sob o prisma temático, essas concepções, juntamente com a maldade humana encarnada no príncipe e por ele exercitada com perícia e satisfação e a frivolidade existencial e bajulatória dos cortesãos concedem ao filme, para além da ação e dos demais elementos que o compõem, sentido filosófico inusual no cinema.
A argumentação do príncipe a respeito da existência de Deus “cada homem cria seu deu e seu próprio paraíso e inferno”, além de substanciosa, ao invés de explicar e justificar sua crueldade e insensibilidade humana, as contrariam, podendo alicerçar concepções e práticas opostas.
Não obstante isso, é incomumente brilhante e inteligente. O culto ao diabo que a complementaria ou lhe seria decorrente, segundo o filme, não constitui sua contrapartida, ao contrário. Não passa de excrescência explicável pela necessidade de o espírito humano preencher o vácuo da descrença na deidade convencional.
Se esse entendimento permeia o tema, outorgando-lhe seriedade e consistência, mais ainda o singulariza e o destaca a sofisticação de seu conteúdo propriamente imagético.
A cena inicial da velha aldeã catando gravetos em paisagem soturna e descarnada de folhagens e encontrando-se com a morte constitui beleza pictográfica ecoante dos quadros de Bruegel. A suntuosidade multicor e requintada das salas, alcovas e salões do castelo, refletida em imagens de filtrada limpidez, contrastante com a paisagem externa, representa talvez o ápice de sofisticação cinematográfica desses ambientes.
A sequência do delírio de Juliana, submetida aos ritos satânicos, e que teria provado “a beleza do terror”, é obra de grande artista pelo sutil e elaborado desfilar das imagens das visões que a assombram e aterrorizam.
Toda essa beleza visual entrança-se e ornamenta a maldade humana que desfila entre seu luxo e requinte, preenchendo-a com exemplares representativos da miséria da espécie.
Corman, a despeito do convencionalismo de sua concepção cinematográfica, consegue inserir-se com esse filme - que teve a participação essencial do cineasta britânico Nicholas Roeg (Londres, 1928-2018) como diretor de fotografia – no campo da arte, provando seu talento, impedido de se manifestar em seus demais filmes (ou em sua maioria, já que se não conhecem todos), pelo seu esquema produtivo de caráter comercial.
Guido Bilharinho
Advogado em Uberaba e editor das revistas culturais eletrônicas Primax (Arte e Cultura), Nexos (Estudos Regionais) e Silfo (Autores Uberabenses