“Fale de sua aldeia e estará falando do mundo.” Leon Tolstoi
A história brasileira é pródiga em ocorrências de massacres em guerras regionais. Na sua maioria, tiveram o mesmo objetivo de reprimir movimentos sociais, tais como, verbi gratia: a Revolta da Chibata (1910), a Guerra do Contestado (1912-1916) e a Guerra de Canudos (1896-1897).
A mais famosa é a mencionada Guerra de Canudos (1896-1897), imortalizada na obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.
A obra de arte, além de propiciar prazer estético por meio da sofisticação formal, em grande parte das vezes tem maior repercussão no imaginário coletivo que os temas veiculados apenas nos meios acadêmicos.
O conhecimento engendrado pela magnífica obra “Os Sertões”, ao se desdobrar sobre a Guerra de Canudos, trouxe maior notoriedade aos fatos nela narrados do que outros conflitos abordados apenas por obras acadêmicas ou mesmo artísticas de menor envergadura.
Diante da força e grandeza de “Os Sertões”, sua influência transbordou os lindes geográficos nacionais e o tema foi tratado nos livros “A Guerra do Fim do Mundo”, do escritor peruano Mário Vargas Llosa, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura 2006, e “Veredicto em Canudos”, do autor húngaro Sándor Márai.
Em entrevista, Mario Vargas Llosa ressalta que “Os Sertões” se constitui em uma grande narrativa, que demonstra a total ausência de compreensão e diálogo de um lado para com o outro e que essa situação é um espelho dos conflitos que, principalmente, permeiam toda a América Latina.
Outra obra artística que transcendeu a história nela representada é o quadro “Guernica”, de Pablo Picasso, que, inclusive, paradigmaticamente, é citado no próprio romance.
Apesar de a obra de arte não ter, intrinsecamente, nenhuma função de denúncia, ela pode gerar conhecimento sobre temas e alcançar público muito mais vasto, gerando reflexões mais amplas, que transbordam os limites da arte.
É narrado neste romance o pouco conhecido massacre perpetrado pelo Exército Brasileiro e pela Polícia Militar do Ceará de 500 a 1.000 homens, mulheres, crianças e idosos residentes na comunidade denominada como “Caldeirão de Santa Cruz do Deserto”, localizada nas terras do Crato, do referido Estado do Ceará. O povoado era liderado pelo paraibano de Pilões de Dentro, José Lourenço Gomes da Silva, mais conhecido por beato José Lourenço.
Neste livro, o autor nos brinda com um belo relato, onde o personagem principal, Severino, convive com figuras da História nacional, tais como: Padre Cícero, Lampião, Getúlio Vargas, Luiz Carlos Prestes, o citado beato José Lourenço, dentre outros.
O livro discorre sobre um regime de opressão que, mutatis mutandis, perdura até hoje contra a população menos favorecida.
Na obra, o autor narra a história de Raimundo Pereira, que, diante dos infortúnios que sofreu, teve de alterar seu nome para Severino Batista.
No fio narrativo conduzido pelo personagem principal, nos é revelada a opressão a uma classe totalmente desfavorecida, fragilizada e exposta à violência desmedida.
Neste livro nos é mostrado como as classes dominantes subvertem a ordem e tratam com violência todos aqueles que procuram um modo de produção alternativo ao semifeudal, que predominou no Brasil até meados do século XX.
De acordo com a estrutura produtiva reinante na época, não há nenhuma forma de se admitir a autonomia econômica dessa classe, a fim de se manter intacto o sistema primitivo de produção agrária, que dependia de intensiva disponibilidade de mão de obra barata.
A obra nos apresenta cenas de violência e de subjugação de pessoas altamente fragilizadas diante das condições de miséria e desamparo em que vivem, traduzindo triste realidade que, por longos anos, vigorou no Brasil.
Em síntese, é uma obra que, ao falar do passado, denuncia muitas mazelas do presente.
(1) Prefácio ao livro de ficção “Resiliência da Alma”, do autor Chico Lima, ainda inédito.
Marcos Bilharinho
Advogado e escritor