"Bruxo dos Sons" transformou tudo em música – até entrevista dada a O TEMPO
Hermeto Pascoal morreu neste sábado (13/09) (Foto/RUDI BODANESE/divulgação)
O multi-instrumentista alagoano Hermeto Pascoal morreu neste sábado (13), aos 89 anos, no Hospital Samaritano Barra, na zona sudoeste do Rio de Janeiro, em decorrência de falência múltipla dos órgãos. A informação foi confirmada em nota pela unidade de saúde e publicada nas redes sociais do músico.
“Com serenidade e amor, comunicamos que Hermeto Pascoal fez sua passagem para o plano espiritual, cercado pela família e por companheiros de música”, diz a mensagem. “No exato momento da passagem, seu Grupo estava no palco, como ele gostaria: fazendo som e música. Como ele sempre nos ensinou, não deixemos a tristeza tomar conta: escutemos o vento, o canto dos pássaros, o copo d’água, a cachoeira, a música universal segue viva”.
Hermeto em BH
Mesmo perto dos 90 anos, Hermeto seguia em turnês. Neste fim de semana, por exemplo, ele tinha apresentação agendada em Belo Horizonte. Hermeto iria se apresentar com o grupo Nave Mãe, neste sábado (13/9), no Teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas, como parte da programação do Festival Acessa BH 2025. No entanto, a vinda dele havia sido cancelada, na última terça-feira (9) por "motivos de saúde", de acordo com a assessoria de imprensa do evento.
O artista também não deixava de lançar novos trabalhos: em 2024, apresentou o álbum "Para você, Iza", dedicado à sua primeira companheira, Ilza Souza Silva, mãe de seus seis filhos, falecida em 2000. Também teve sua trajetória revisitada na biografia Quebra tudo! A arte livre de Hermeto Pascoal, de Vitor Nuzzi.
O último show dele na cidade foi em agosto de 2024, quando se apresentou com seu grupo na casa de shows A Autêntica, dentro da programação do Tabuleiro Jazz Festival. Aos 88 anos, seguia cheio de projetos, lançando novos álbuns e até protagonizando exposições de artes visuais.
Entrevista a O TEMPO
Na ocasião, refletiu sobre sua maneira livre de criar: “Eu sou 100% intuitivo e autodidata. Tudo que eu faço vem do que estou sentindo no instante que estou criando. Por isso que eu digo que só Deus sabe o que vai acontecer em um show e mais ninguém – nem eu”, disse em entrevista a O TEMPO, evocando indireta e, talvez, não intencionalmente uma conhecida citação atribuída ao filósofo Heráclito de Éfeso.
“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”, teria dito o filósofo pré-socrático ao refletir sobre como a natureza – e o homem como parte dela – está em constante mutação e mudança, de maneira que nada é imutável e absoluto, mas, sim, movimento.
Maestro
Um movimento que o velho Bruxo dos Sons sabia reger como poucos. Tanto que, em tantos anos de estrada, ele se orgulhava, recorrendo a expressões com um quê de Guimarães Rosa, nunca ter se decepcionado com a maneira como as pessoas mundo afora, falantes dos mais diversos idiomas, recepcionaram suas performances: “O público, minha Nossa Senhora, nunca me surpreendeu ao contrário”.
“Às vezes, parece até que as pessoas já tinham assistido a aquele show, que eu nunca tinha feito antes. Sabe que, mesmo sem eu nunca repetir nada, essa gente sempre corresponde com sua maneira de escutar, de se envolver e cantar”, comentou o artista na ocasião. Ele se mostrou satisfeito do efeito que causava nas mais variadas audiências, que geralmente acompanhavam com o corpo, em movimentos cadenciados, seus sons quase hipnóticos – incluindo onomatopeias, ruídos e balbucios costumeiramente reproduzidos com entusiasmo por seus fãs.
Reflexivo, o artista indutor de experiências similares a um transe parecia intrigado inclusive com a sincronia que encontrava com suas plateias. “É engraçado porque o público também não escuta a mesma coisa. Cada um escuta do seu jeito, porque todos, quando escutam, têm a mesma liberdade que eu de criar”, defendia.
Composição ao fim da conversa
Curiosamente, mesmo que Hermeto, com seu jeito despretensioso, fizesse reflexões que, não raras vezes, remetessem a elaborações de teóricos e filósofos que se dedicaram a sistematizar o conhecimento, a verdade é que ele próprio seguia na contramão dessa lógica. Afinal, avesso a qualquer sistematização do fazer musical, ele se reconhecia em um constante esforço de se afastar de hábitos que pudessem, eventualmente, levar a uma rigidez do seu processo de criação, ameaçando a experiência radical de música livre que ele – e talvez só ele em todo o mundo – propunha.
“Eu não quis saber de teoria, não quis estudar música, porque não queria cortar esse dom da inspiração, (da sensibilidade) de receber (a composição) e daí tocar meus instrumentos, minhas coisas todas”, garantiu na conversa. “Ultimamente, eu até estou pegando pouco nos instrumentos, porque eu já sou totalmente um instrumento da música, sem premeditação e com muita emoção, com aquela gana, aquela surpresa que vem, que vem assim como o vento, de um jeito que eu até me assusto, mas no bom sentido, sabe?”, concluiu, deixando em aberto uma pergunta que, talvez, ele e somente ele possa responder.
Prova disso: no fim da conversa, ele contou ter criado uma composição. Mais uma das mais de 10 mil músicas que compôs ao longo de sua carreira – e nas mais diversas superfícies, como guardanapos, roupas e até portas de casa.
Fonte/O Tempo