Semana passada, o jornal Folha de S. Paulo divulgou entrevista realizada anteriormente pela BBC sobre um livro de pesquisador espanhol abordando impacto do câncer na sociedade. O entrevistado é biólogo molecular e avança em temas da clínica médica e da epidemiologia com frases de efeito como “não tenho medo do câncer nem de nenhuma outra doença; tomara que as que couberem a mim, como ser biológico, cheguem o mais tarde possível”. Um equívoco básico, somos antes de tudo seres sociais. Depois, ele garante ter uma predestinação genômica ao declarar: “Tenho 63 anos, me parece uma façanha cósmica, resistindo a milhares e milhares de mudanças diárias no meu genoma”. O título da matéria é sensacionalista: “Me parece claro que o assombroso não é ter câncer, mas sim não tê-lo”.
Ele tenta explicar sua tese com um conceito popular difundido por Richard Dawkins: as células que provocam o câncer assim o fazem porque se tornam “egoístas”. O “gene egoísta” é tema polêmico a ser abordado em outro momento. O entrevistado desconhece epidemiologia, mas avança na filosofia ao afirmar: “Quando você observa os milhões de reações bioquímicas que fazem cada instante possível, o apreço pela vida é infinito”.
Todo o arrazoado apresentado é um exemplo do reducionismo biológico de qualidade ruim que precisa ser pontuado em cinco tópicos: a ausência de menção ao cigarro, o desconhecimento da evolução temporal das doenças, o efeito competitivo de causas de morte, a prevenção do câncer e perspectivas do câncer no cenário epidemiológico.
O primeiro ponto é preocupante. Os editores deveriam questionar por que o entrevistado repetidamente afirma que o “câncer é genético”, mas nada diz sobre o tabagismo. Há mais de 70 anos, na coorte dos médicos ingleses, mostrou-se que o tabagismo é a causa principal do câncer. No caso da neoplasia de pulmão, 90% dos casos são devido ao consumo de cigarro. Assim, ainda em 2021, a despeito da queda da prevalência do tabagismo na população do País, o câncer de pulmão é a neoplasia que mais mata brasileiros de ambos os sexos.
O segundo ponto é que o entrevistado desconhece que todas as doenças têm evoluções temporais com o aumento de casos e mortes, estabilização desses números e, depois, quedas da incidência como da mortalidade. Exemplificando: até a metade do século passado, as doenças infecciosas como pneumonia, tuberculose, enterites, eram as principais causas de morte no Brasil e no mundo. Com a melhoria de saneamento e a introdução de antibióticos, essas doenças passaram a ter letalidade cada vez menor. Por atingirem os mais jovens, as novas gerações beneficiadas com essas melhorias passaram a morrer mais de doenças cardiovasculares.
Na década de 1950 houve aumento importante na incidência e mortalidade das doenças cardiovasculares, que se tornaram a principal causa de morte. Novamente estudos de coortes, no caso o Framingham Heart Study, mostrou que o trio colesterol alto-hipertensão-tabagismo era determinante na mortalidade cardiovascular. Em decorrência desse conhecimento, várias ações de saúde pública e novos medicamentos para redução de pressão arterial e do colesterol permitiram uma queda da mortalidade cardiovascular, mesmo assim persiste como a principal causa de morte no Brasil e no mundo.
O terceiro ponto é o sucesso da cardiologia preventiva. A letalidade cardiovascular se reduziu e, com isso, efeitos prolongados do tabagismo, como cânceres e as doenças pulmonares, aumentaram em proporção maior que anteriormente, pela queda da mortalidade cardíaca, o que denominamos “efeito competitivo da mortalidade”. No entanto, o risco de morte por todas as causas de câncer se reduz ano a ano desde 2005 para ambos os sexos. A mortalidade por câncer de mama está estável e por próstata, em declínio.
O quarto ponto é que o entrevistado de relance cita causas não genéticas de câncer, como HPV (cânceres de colo uterino, pênis e cabeça e pescoço) e Helicobacter pylori (câncer de estômago). Justamente, a detecção precoce de lesões uterinas causadas pelo HPV (Papanicolau) e a vacina para o vírus permitiram redução importante na incidência e letalidade do câncer de colo uterino. A melhora no saneamento e no acondicionamento de alimentos permitiu redução da prevalência do Helicobacter (e de outros carcinógenos em alimentos preparados), que produziu uma queda na incidência e mortalidade do câncer de estômago. Como já dito, a principal prevenção de todos os cânceres foram as políticas públicas de redução do tabagismo.
O quinto tópico é que o câncer não é inevitável. As causas de morte que estão em ascensão a partir dos 70 anos de idade são a doença de Alzheimer, a doença de Parkinson, para ambos os sexos, e doença renal para os homens brasileiros. Para compreender as causas do aumento da mortalidade por essas novas causas, novamente as coortes irão responder, incluindo o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, o Elsa-Brasil, que acompanha 15.105 adultos desde 2008.
A importância em mostrar os equívocos sérios publicados com grande destaque na imprensa brasileira é advertir que as pesquisas em bancadas são meritórias e válidas, mas que não podem ser extrapoladas para o indivíduo. Para isso existem o conhecimento milenar da Clínica Médica, como principalmente para populações, e o conhecimento de décadas da Epidemiologia. Esta é uma advertência tanto para pesquisadores como para aqueles dedicados à divulgação científica: não transponham resultados de bancada para populações.
Nota final: o autor e os pesquisadores do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica são organizadores do Elsa-Brasil e participam do consórcio Global Burden of Diseases (GBD), cujos resultados até 2021 foram aceitos por The Lancet, mas ainda se encontram sob embargo.
Paulo A. Lotufo
Professor da Faculdade de Medicina e superintendente de Saúde da USP