Polícia aponta que origem da contaminação de bebidas com substância tóxica esteja na compra, por falsificadores, de álcool alterado em postos
Diversos casos suspeitos de intoxicação por metanol após consumir bebidas alcoólicas foram identificados no país (Foto/Getty Images/iStockphoto)
As investigações a respeito do surto de intoxicação por metanol seguem em curso no Brasil. Nesta terça-feira (14/10), a Polícia Civil de São Paulo cumpre 20 mandados de busca em oito cidades do estado. Nessa segunda-feira (13/10), o Ministério da Saúde divulgou que os casos confirmados de contaminação após consumo de bebidas alcoólicas subiram para 32. O governo ainda investiga a suspeita da substância no organismo de 181 pacientes que apresentaram sintomas.
Na última sexta-feira (10/10), a Secretaria de Segurança Pública informou que há uma forte suspeita de que a contaminação das bebidas com metanol tenha se originado da compra, por falsificadores, de etanol combustível adulterado com a substância. A pasta também apura o possível envolvimento do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização investigada por adulteração de combustíveis e lavagem de dinheiro em postos de gasolina.
Em entrevista coletiva na última sexta-feira (10/10), o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, afirmou: “Os casos que vieram à tona apresentam alta concentração de metanol, encontrado nesse etanol de um posto de combustível, que foi utilizado para adulteração da bebida. A nossa linha de investigação é essa. Ou seja, o crime organizado adulterava o etanol para lucrar, e esse etanol contaminado acabou sendo usado por falsificadores de bebidas”.
Como o metanol é usado legalmente e por que está disponível
Segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o metanol não é produzido no Brasil e todo o produto que circula no país é importado; apenas empresas com autorização do órgão podem comprá-lo. Por ser insumo industrial, usado na fabricação de formaldeído, ácido acético, tintas, solventes, plásticos e na produção de biodiesel, a sua venda não é proibida desde que tenha origem comprovada. Em marketplaces é até possível encontrar pequenas quantidades (galões de 1 ou 5 litros).
Por que criminosos adicionam metanol às bebidas
A principal motivação é econômica. O metanol é, em muitos casos, mais barato de fabricar e carrega uma carga tributária bem menor do que os combustíveis automotivos ou produtos destinados ao consumo. Além disso, sua presença é de difícil detecção sem análise laboratorial, o que facilita a adulteração para aumentar, de forma barata, o teor alcoólico aparente das bebidas.
Um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado em fevereiro deste ano, apontou que o mercado ilegal de bebidas alcoólicas movimentou R$ 56,9 bilhões no Brasil, um aumento de 224% em relação a 2017, com sonegação fiscal de mais de R$ 28 bilhões em 2023. O levantamento também indicou que o crime organizado lucra mais com venda ilegal e contrabando de combustíveis e bebidas do que com o tráfico de cocaína.
Preço e lucro dos falsificadores
O presidente do Sindicato das Indústrias de Bebidas de Minas Gerais (Sindbebidas-MG), Mário Marques, explica por que a adulteração é economicamente atrativa.“Economicamente é extremamente viável a falsificação, já que o nosso imposto chega a 100%. Se a gente fabricar um produto com o mesmo preço, nós já temos 100% de aumento que é a questão tarifária. E não há fiscalização nenhuma.”
Marques detalha como o excedente de imposto vira lucro direto para a cadeia clandestina. “O lucro deles só de imposto é 100%. E aí o que acontece, ele não repassa os 100%. Então quem ganha com isso aí é quem faz esse produto clandestino e o comerciante que está vendendo esse produto.”
Mário ainda acrescenta. “Esse metanol que se achou nas bebidas é um produto específico para misturar no combustível de carro. Então a pessoa errou duas vezes, além de adulterar, ainda usou um produto que não é para consumo humano. Não vou falar nem que é por ganância, porque é quase que o mesmo custo do álcool de combustível que não faz tanto mal como o metanol que usaram para fazer esse produto. O preço é muito parecido.”
“Ele vai comprar mais barato porque não vai comprar de posto de gasolina, e sim de um produtor de álcool. Então ele vai comprar de R$ 3 a R$ 4, e esse vai ser o custo que vai ter para poder desdobrar um produto, porque enquanto a gente consegue produzir uma bebida destilada entre 44% e 46%, esse produto aí está entre 78% e 80% de teor alcoólico. Então, são duas coisas que prejudicam. Eles pegam um produto com teor alcoólico muito alto e diluído, e a clandestinidade, porque não pagam imposto nesse produto,” conclui Marques.
‘Metanol natural’
Paulo Henrique Tavares, professor do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), explica que, em bebidas fermentadas, o metanol pode aparecer em quantidades baixas e naturais, geralmente sem risco. No entanto, o metanol industrial adicionado de forma deliberada é que é tóxico.
“Algumas bebidas que são feitas a partir de frutas, vou citar como exemplo a mais conhecida, que é o vinho, feito a partir da uva, no momento em que você produz, é feito primeiro a fermentação. Essa fruta contém em sua casca uma substância chamada pectina. E essa pectina é que vai gerar no processo produtivo o precursor da substância. Então, além da uva, maçã, pera, todas têm essa estrutura chamada de pectina, que dá origem ao metanol no processo produtivo da bebida.”
O professor ainda destaca que “a recomendação é que se use menos quantidade possível da casca na produção. Quando o processo produtivo é bem feito não há risco. O problema é quando há uma adição fraudulenta de metanol, geralmente proveniente de resíduos industriais.”
Metanol x etanol — parecidos, mas com efeitos muito diferentes
É impossível notar a diferença entre metanol e etanol sem testes de laboratório: ambos são incolores, inflamáveis e têm cheiros semelhantes, de modo que o consumidor não consegue perceber, apenas analisando a bebida no copo, se ela está adulterada.
Quimicamente, porém, tratam-se de substâncias distintas. O metanol, historicamente chamado de “álcool da madeira”, hoje é produzido principalmente a partir do gás natural. Já o etanol é obtido sobretudo pela fermentação de açúcares de matérias-primas vegetais (cana-de-açúcar, milho), por ação de leveduras, e depois é destilado para purificação.
Enquanto o etanol é o álcool presente em bebidas alcoólicas, o metanol é extremamente impróprio para consumo humano. A ingestão, inalação ou contato prolongado com a substância podem causar náusea, tontura, convulsões, cegueira e até a morte. “A molécula do metanol tem um carbono só e a do etanol tem dois. Só que no organismo humano, pequenas diferenças de moléculas podem provocar uma diferença brutal no resultado”, finaliza Paulo.
Fonte: O Tempo