Lia, encantado, Lygia Fagundes Teles... “A borboleta pousou primeiramente na base de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se colaram palpitantes. Desenrolou a tromba. E inclinando o corpo para frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor... Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com fino friso negro debruando-lhe as asas...”. Tomando fé da leitura, passou logo do encantamento à aflição. Afinal, como àquela altura da vida, depois de olhar tantas borboletas, jamais se dera conta de que tinham trombas. E pior. A despeito de muitas vezes ter visto borboletas pousando em flores ou folhas, jamais havia notado uma folha vergar por seu pouso, tampouco o palpitar de asas. Havia tudo isto? E a borboleta afundou a tromba no âmago da flor. Felizmente “Maria Camila” desistiu de pegá-la, arrependendo do impulso, não interrompendo o ato natural e belo da borboleta amarela ornada nas bordas pelo fio negro. Seu íntimo trepidava diante da constatação de tanta cegueira. Quantas borboletas já havia olhado sem de fato ter visto plenamente! Estendeu o pensamento para a diversidade de seres que já mirou sem ter plenamente visto. Quanto devia ter percebido pelas metades, ou nem isto? Alcançou no pensamento o próprio ser humano. Tomou-se de pânico, de tristeza, de palpitação. Afinal, num único parágrafo percebeu tanto vago e perdido era seu olhar ante a diversidade da vida. Isto apenas para se considerar o olhar... quanto deve ter perdido da audição desconcentrada, do olfato distraído, do tato indiferente, pelo paladar insípido. Tantos os sentido divinos que nos são ofertados, subusados. Enfim, devia ter perdido demais do teor da vida. Que desapontamento! Quanta desatenção. Embora receosa de já a essa altura não mais recuperar todas as borboletas malvistas pela vida afora, propôs a si ainda tentar mudar para poder ouvir o clamor dos que a rodeiam, sentir o amor dos que tentam amá-la, o cheiro e o sabor da vida como um todo, não só no contorno estético das lindas borboletas, mas também como tal “afundar a tromba no âmago da flor” , depois de bem fincar as patas adequadamente, a ponto de inibir a ação dos que ousam engendrar e impedir o gesto de quem se atreva a conter as asas do viver. Havia ainda que comungar com a rosa, em quem penetrou no seu âmago. Suspirou e se prometeu dali em diante ver bem as borboletas da vida. Afinal há muitas borboletas, em diversas formas envidadas por Deus, para chamar nossa atenção e há muitos sentidos disponíveis para absorver a vida para plena existência.
Ricardo Motta