Produção de medicamentos contra o HIV em Farmanguinhos/Fiocruz (Foto/Banco de imagens de Farmanguinhos/Divulgação)
Sob o comando de Donald Trump, os EUA cortaram fundos de financiamento a pesquisas e tratamento de HIV para outros países e deixaram o mundo em alerta. Em algumas nações africanas, a dificuldade de acesso aos medicamentos começou a ser sentida imediatamente, e um estudo aponta que, globalmente, a falta de recursos pode matar 2,9 milhões de pessoas até 2030. Já o Brasil é independente na produção e na distribuição dos remédios, mas ainda assim pode sofrer consequências desse retrocesso mundial.
Em seus primeiros meses de volta à Casa Branca, Trump mandou fechar a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), instituição com seis décadas de história que implementou ações de assistência humanitária. Uma de suas principais frentes era a prevenção ao HIV e a facilitação do tratamento em países de baixa renda.
Ela gerenciava os recursos do Plano de Emergência do Presidente para o Alívio da Aids (Pepfar). Desde seu lançamento, em 2003, o programa investiu US$ 110 bilhões no controle do HIV em pelo menos 50 países, especialmente na África, em ações como a disponibilização de medicamentos gratuitos para os pacientes. A estimativa do governo dos EUA é que a iniciativa tenha salvo a vida de 26 milhões de pessoas em pouco mais de 20 anos.
O Pepfar não foi cancelado pelo governo Trump e continua a receber fundos, mas com restrições, como a limitação do público que pode receber PrEP — comprimido que previne a infecção por HIV mesmo em relações sem preservativo. Sem o suporte da Usaid, a operacionalização da ajuda internacional tem sido afetada. Na prática, relata a imprensa internacional que acompanha a situação in loco, os remédios ainda existem, mas não mais a estrutura para distribuí-los a quem precisa.
Um modelo publicado na revista científica “The Lancet” estima que até 2,9 milhões de pessoas podem morrer por causas relacionadas ao HIV até 2030 com um eventual corte de ajuda de custo de nações mais ricas, como os EUA e o Reino Unido. Nesse cenário, o número de novas infecções pode se aproximar de 11 milhões nos próximos cinco anos.
E como fica o Brasil sem ajuda dos EUA contra o HIV?
O Brasil é um dos países beneficiados pelo Pepfar, mas tem autonomia na produção e na distribuição de medicamentos para prevenção e tratamento do HIV. Hoje, o país é uma referência global nos cuidados com a infecção e produz seus próprios medicamentos.
“Até mais ou menos a década de 90, no boom da descoberta do vírus e da doença, dependíamos efetivamente de ajuda internacional. Aí, com a criação da Lei nº 9.313/96, que dá a todos as pessoas com HIV o direito ao acesso gratuito aos medicamentos, nosso programa é totalmente bancado pelo governo federal”, introduz a doutora em Ciências e pesquisadora de antirretrovirais em Farmanguinhos/Fiocruz Monica Bastos.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é a principal fornecedora pública de medicamentos contra o HIV no Brasil. Ela produz os remédios com base na tecnologia de farmacêuticas estrangeiras, adquirida por meio de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). O Brasil paga pela tecnologia e, após a transferência, tem autonomia para produzir seus próprios comprimidos.
Um relatório do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) avalia que, entre 43 nações de renda baixa ou média, o Brasil tem o maior custo doméstico com os antirretrovirais. Em compensação, não depende de ajuda externa. “Sempre utilizamos medicamentos inovadores. O dinheiro é repassado à detentora da patente, o que é justo, mas o retorno é incrível. Temos um custo elevado porque os medicamentos são caros”, destaca Bastos.
Hoje, a Fiocruz produz nove medicamentos contra o vírus, sendo um deles o comprimido da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que previne a infecção. O esforço da instituição é investir nas tecnologias mais atualizadas de defesa contra o HIV — os tratamentos de primeira linha. O convênio mais recente firmado pela fundação foi para a produção da combinação de dolutegravir e lamivudina em um só comprimido.
“É um único comprimido diário. Isso é excelente, porque melhora a adesão do paciente ao tratamento. O estigma de ter que tomar vários medicamentos é muito ruim”, pontua Bastos. Ela lembra que, com o tratamento adequado, a carga viral da pessoa se torna indetectável, isto é, ela não transmite o vírus nem em uma relação sem preservativo — que não é recomendada, de toda forma, devido ao risco de transmissão de outras infecções.
Entenda. Quem vive com HIV precisa contar no sexo?
O infectologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Unaí Tupinambás reflete que os medicamentos contra o HIV foram um salto tecnológico e social. “Com o advento da terapia antirretroviral no final dos anos 1990, houve avanços significativos na efetividade desses medicamentos: maior potência na supressão da replicação viral, menos efeitos colaterais e posologia mais confortável. Isso transformou uma condição anteriormente fatal em uma condição controlável. Hoje, as Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) têm expectativa de vida semelhante à da população geral de sua comunidade”.
Além dos remédios para pessoas com HIV, a Fiocruz também produz a Prep. É um método preventivo, em que pessoas com maior chance de exposição ao vírus conseguem se proteger do vírus até em relações sem camisinhas. A fundação já estuda a obtenção de uma nova tecnologia, a Prep injetável, que utiliza uma única injeção a cada seis meses para a proteção. Ela foi criada pela farmacêutica Gilead, mas ainda não foi aprovada para uso no Brasil. “É questão de tempo”, projeta a pesquisadora.
Mesmo sem ameaça direta, Brasil também pode ser afetado
Ainda que não sofra com o desabastecimento de medicamentos, o Brasil pode sofrer indiretamente com os cortes internacionais, especialmente se eles afetarem o desenvolvimento de pesquisas sobre novos tratamentos.
“Quando esses cortes ocorrem, não afetam somente a distribuição de medicamentos em países que dependem exclusivamente dos EUA. É uma cadeia. Os cortes interrompem pesquisas de novas terapias e vacinas. Não só o Brasil, mas todos os países do mundo poderiam se beneficiar. É um impacto indireto que nós temos”, enfatiza a pesquisadora Monica Bastos.
O professor Unaí Tupinambás lembra que Trump cortou fundos do Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH), que antes seriam utilizados para pesquisas sobre HIV e outras infecções. “Esses cortes certamente afetarão o desenvolvimento de novos medicamentos, vacinas e a meta de eliminação da epidemia de HIV como problema de saúde pública até 2030. O impacto global pode nos afetar indiretamente, uma vez que o atraso no controle da epidemia nos países de baixa renda representa uma ameaça à saúde pública internacional. A pandemia de Covid-19 nos lembrou que os vírus não respeitam fronteiras”, conclui o médico.
Fonte: O Tempo